Comecemos por fazer um pequeno enquadramento para que se perceba o que temos pela frente. Hans-Joachim Irmler começa a surgir nas andanças do rock alemão no início dos anos 70 do século passado, tendo sido uma importante figura da banda Faust. Fez parte da formação inicial desse grupo seminal de krautrock, e anda em atividade há mais de 40 anos sem nunca se desviar dos seus propósitos: fazer música belíssima e estranha ao mesmo tempo. O seu órgão fez-se ouvir, por exemplo, nos extraordinários Faust (1971), Faust So Far (1972), The Faust Tapes (o famoso álbum que foi vendido ao preço de um single, pela Virgin, em 1973) e Faust IV, apenas para referirmos os discos verdadeiramente importantes lançados pela banda de Wümme. Na verdade, Hans Joachim Irmler nunca se desligou dos Faust, e ainda hoje mantém esse projeto. No entanto, este 500M não se fez sozinho. Nele participa também Gudrun Gut, senhora de eletrónicas e experimentalismos vários, que passou pelos industriais Einstürzende Neubauten, Mania D (grupo underground da new wave berlinense) e do que dessa banda sobrou quando da sua dissolução, de nome Malaria! Depois, e com mais duas mulheres, formou a banda Matador e tem trabalhado em bandas sonoras, vídeos e instalações. Feitas as apresentações, e pelo que nelas se lê, fácil será perceber que 500M não é um disco para os «ouvidos do mundo», mas para apenas uma pequeníssima parte dele. Pertence ao lote das coisas inclassificáveis e de digestão difícil, mas compensadora.
A capa merece, desde logo, um sublinhado especial. A preto e branco, a imagem escolhida como «cara» deste 500M mostra-nos a dupla (ela sentada, ele em pé) com balões de linguagem, à maneira da banda desenhada. Eles apresentam-se, muito simplesmente e sem cerimónias. Original, sem dúvida. Estão à frente de uma parede branca, e é possível ver-se distintamente, no mesmo cenário, uma bola de espelhos, uma bicicleta, um caixote com um urso de peluche, um quadro no chão, sapatos… Gudrun Gut veste o que parece ser um pijama. Muitos objetos e pouquíssimas ligações entre eles que no entanto, enquanto imagem, resultam muito bem. No fundo, o que se ouve neste 500M é também isso, uma imensa colagem de sons e estruturas mais ou menos complexas, improvisações avant-garde, loops, ecos de tempos e de espaços muito pouco nítidos e definidos. Nada que nos deixe perdidos, se conhecermos um pouco do percurso de ambos. Neste álbum não há espaço para canções, para a norma. Por outro lado, o ruído existe, moderado, quase impercetível por vezes. Ou então, noutros momentos, a eletricidade e os seus estalidos fazem ouvir-se, ganhando volume, espécie de corpo que enche os ouvidos e a cabeça de quem os escuta. O krautrock é a cola que une todos os pedaços, todas as peças desta filigrana composicional. Embora possa não parecer aos mais distraídos, isto também é música, isto também pode ser ouvido com gosto e com paixão. Por vezes, certas passagens lembram Neu! ou Nurse With Wound. E, mesmo que em algumas faixas, numa primeira audição, nada pareça acontecer, não se deve acreditar piamente nessa impressão. Há algo que fervilha, algo que tenta surgir à superfície como se de um corpo vivo se tratasse. 500M é um disco que dá luta. Por tudo isto, fica o aviso: ou vai preparado para passar por uma experiência inusitada e exigente, ou então é melhor deixar este disco de parte e escolher outro mais do seu agrado, mais previsível, que seja mais «a sua cara». 500M não tem cara nem corpo. Só tem alma.