Traços de genialidade de Damon Albarn e temáticas de 2005 que parecem antecipar os dias sombrios da atualidade materializaram-se num disco inesquecível.
O mundo já era um lugar perigoso, estranho e louco, com guerras, atentados terroristas e catástrofes naturais, a caminho da crise do subprime e da espiral de devastação socioeconómica e financeira, quando Damon Albarn e James Hewlett partilharam a composição das 15 canções de Demon Days para a sua banda virtual, constituída pelas figuras de 2D, Murdoc, Noodle e Russel.
E não lhes faltaram colaborações num álbum camaleónico, que navega com sucesso por estilos que vão do rock ao reggae, passando por eletrónica, hip hop, indie, pop, funk, rap, entre outros. “Uma viagem pela noite em que cada canção é um confronto com demónios pessoais”: foi assim que o próprio vocalista dos Blur classificou o disco.
Depois dos ecos fantasmagóricos de “Intro”, a batida, o piano e as cordas de “Last Living Souls” ressoam para sempre, mesmo nos ouvidos menos sensíveis, numa letra que remete para o isolamento e a indiferença nas sociedades modernas. “Kids with Guns” traz a primeira colaboração (Neneh Cherry) e a temática da violência, seguindo-se “O Green World”, mergulho declarado na mais profunda escuridão.
Depois, há três hinos consecutivos. “Dirty Harry”, personagem-título de filmes realizados por Don Siegel com Clint Eastwood como protagonista (e que já fora homenageado no trabalho anterior da banda, o inaugural Gorillaz, de 2001), é a invasão do Iraque e a referência ao cowboy George W. Bush, então Presidente dos EUA, na falsa demanda pelas armas de destruição em massa. Bootie Brown participa, assim como o Coro Infantil de San Fernando Valley, e a iconografia videográfica lembra logo o filme “Nascido para Matar” (“Full Metal Jacket”, no original), de Stanley Kubrick.
“Feel Good Inc.”, com a colaboração dos De La Soul, define-se como um atestado aos males do consumismo nas suas raízes de ignorância e total perda de discernimento, tendo conquistado audiências e prémios. “El Mañana” revela puro desespero e medo em reflexos de gospel, soul e blues.
Em “Every Planet We Reach Is Dead” aprofundam-se os ambientes melancólicos do disco e lá está a colaboração de Ike Turner, cujo comportamento violento contra a mulher, Tina Turner, e o consumo de drogas ensombraram os seus feitos musicais até à morte, em 2007. “November Has Come” apresenta MF Doom e segue a linha geral do álbum, “All Alone” é um apelo à serenidade e envolve as colaborações de Roots Manuva e Martina Topley-Bird. “White Light” devolve o desespero, agora sob a capa do vício e da dependência de estupefacientes, “DARE” vale uma cooperação em tons de pop eletrónica com Shaun Riley e Neneh Cherry.
“Fire Coming Out of a Monkey’s Head”, narrado pelo inconfundível Dennis Hopper, escorre pura ganância em função da exploração dos recursos naturais. “Don’t Get Lost in Heaven”, com o London Community Gospel Choir, é um alerta contra os malefícios das religiões e das drogas, e o álbum fecha em grande com a canção que lhe dá título: “Demon Days” é outro festival de gospel que culmina com um crescendo de cordas para o situar numa rara dimensão de beleza. Em resumo, um trabalho essencial para entender a banda, mas também visionário na forma de avaliar o estado da sociedade contemporânea.