O oitavo álbum de estúdio dos Gorillaz mostra que a banda continua em grande forma e recheado de excelentes colaborações e que nem sempre é preciso reinventar a roda para fazer um bom disco.
A espera não foi longa, mas o regresso é bem-vindo: ao oitavo trabalho de estúdio (tantos como os discos de Blur) os Gorillaz de Damon Albarn e do desenhador/cartoonista Jamie Hewlett regressam com “Cracker Island”, um trabalho de estúdio que cheio de energia, boas vibrações e canções surpreendentes.
Como sempre, as colaborações escolhidas a dedo encaixam-se perfeitamente nas canções criadas por Albarn e a imagem desenvolvida por Hewlett envolve este trabalho numa nuvem de criatividade não só sonora, mas também visual, um bombom artístico completo, que agrada a todos os sentidos.
O disco arranca logo bem, cheio de groove, com os primeiros acordes do baixo de Thundercat a ditar o tom da faixa que dá nome ao álbum. “Cracker Island” é uma explosão de ritmo funk alinhado com o baixo ritmado, que dá imediatamente vontade de abanar ao ritmo da música. E depois as variações, as flutuações, as mudanças de ritmo na forma como Albarn canta tornam este tema um dos melhores do disco e um excelente cartão de visita para este álbum: alegre, de inspiração funk e até, de certo modo, latina, cheio de ritmos dançáveis, de sintetizadores, coros e boa energia.
O que é bom nos Gorillaz – corrigimos: uma das muitas coisas boas nos Gorillaz – é que encontramos de tudo. Não há limites para a mistura de géneros e criatividade inerente ao génio musical de Damon Albarn. Aqui, encontramos rock, com o baixo característico de Thundercat em “Cracker Island”, o psicadelismo de Tame Impala e o hip hop de Bootie Brown na mesma música – sim, na mesma, a excelente “New Gold” -, até ao reggaetton de Bad Bunny em “Tormenta”. Sim, leram bem, há reggaeton neste disco de Gorillaz, e é, avisamos já, excelente. Pelo caminho ainda conseguimos ouvir Stevie Nicks (Fleetwood Mac) nos coros de “Oil” e Beck em “Possession Island”, apenas para mencionar algumas das várias parcerias que surgem pela mão de Albarn – e que só são possíveis porque é Albarn.
Fazemos uma pausa no que temos a dizer sobre Cracker Island para falar do génio criativo de um dos seus autores. Oito discos de Blur, oito discos, com este, de Gorillaz. No início dos 2000, lançou Mali Music, álbum gravado durante uma viagem que fez em apoio a uma ONG e que conta com músicos locais. Em meados da década, lançou-se com The Good, the Bad & the Queen, chamando o baixista Paul Simonon (The Clash), o guitarrista Simon Tong (The Verve) e o baterista Tony Allen (Fela Kuti) pra o projeto. Pouco tempo depois, uma nova superbanda, desta vez Rocket Juice and The Moon, com o baixista do Red Hot Chili Peppers, Flea e o baterista Tony Allen. Nos entretantos, dois álbuns a solo e a opera chinesa que criou juntamente com Jamie Hewlett, o seu parceiro desenhador em Gorillaz, depois de terem lançado o primeiro disco deste projeto animado que retrata uma banda fictícia representada em desenhos. Isto para dizer que dificilmente encontraremos, nos anos recentes, um compositor, músico e vocalista tão completo e com tantos projetos e espírito criativo como Albarn. Mas somos suspeitos.
O disco vai seguindo, ora cheio de energia, ritmado, dançável ou mais sereno e tranquilo, uma viagem de carro ao entardecer, com o por do sol, como nos oferece “The Tired Influencer” – e sim, Damon aqui parece pronto a descansar, descendo um pouco os níveis das faixas anteriores. “Silent Running” mantém o tom mais discreto e calmo, mas alegre, com os coros de Adeleye Omotayo, de The Humans Choir, coro criado pelos Gorillaz para os acompanharem em concertos.
E de repente chegamos a “New Gold”, esta mistura louca e explosiva de rock psicadélico com hip hop, de Kevin Parker (Tame Impala), Bootie Brown (The Pharcyde) e, claro, Damon Albarn (que se ouve muito pouco, na verdade, mas também não precisamos de o ouvir mais). Para dançar, para tentar declamar a parte de hip hop ou só para fechar os olhos e aproveitar o que ali está a acontecer, esta é sem dúvida uma das músicas de referência do disco.
É preciso avançar duas faixas (“Baby Queen” e “Tarantula”) para encontrar outro dos momentos mais emblemáticos e surpreendentes do disco. O que faz o Bad Bunny, grande nome do reggaeton, a cantar em castelhano num disco de Gorillaz? Também não sabemos, mas ainda bem que acontece. E de repente estamos no Caribe, a ensaiar uns passos de dança latina, de chapéu de palha na cabeça e quase a desejar que a seguir venha o Maluma dar uma ajuda nos coros. Também aqui Damon ouve-se muito pouco, também aqui não é preciso. Do ritmo reggaeton a alterações repentinas para um teclado delicado que quase não se ouve, é aqui que entra a voz de Albarn, apenas durante meia dúzia de segundos, no início e no fim, em inglês, e já está.
Segue-se, quase a fechar, apenas com Albarn, a suave “Skinny Ape”, fazendo lembrar ligeiramente “Tender”, dos Blur, com um sintetizador ligeiro que, de repente, explode em energia, em eletrónica, em vontade de dançar e saltar.
E depois, a calma em “Possession Island”. Melodia, guitarra dedilhada, Damon cantando ao fundo, a despedida de uma festa bem aproveitada, onde Albarn podia estar de braço dado com Beck, que faz os coros, bramindo a garrafa por terminar da última cerveja, quase em diálogo com o seu amigo. É aquela canção da hora do amanhecer, em que se abre o coração antes de ir para casa. Não é por acaso que cantam “and we are all in this together till the end”. E achamos que já está. Mas, de repente… Mariachis. Sim, temos mariachis na despedida desta loucura frenética, cheia de sons diferentes e sem preconceitos que é este Cracker Island.
São apenas 10 canções curtas, um disco que não chega aos 40 minutos, mas cabe tudo neste álbum de Gorillaz: dos ritmos latinos à eletrónica cheia de sintetizadores bem dançáveis, colaborações excelentemente escolhidas e tudo isto acompanhado do imaginário visual dos Gorillaz.
Mais de 20 anos depois de terem vindo revolucionar o panorama alternativo, a banda continua em grande forma. Há quem diga que estão demasiado confortáveis naquilo que já fazem bem e que este álbum não surpreende. Tudo certo, mas nem sempre é necessário reinventar a roda para fazer um bom disco.