O disco a solo de Gabriel Ferrandini é um delicioso passeio por Lisboa velha, de São Bento ao coração do Bairro Alto, sonorizado por um jazz ambicioso e inventivo.
Arrancamos na “Rua Nova da Piedade”. Não sabemos exactamente em que ponto, se logo no início para um gelado na Nannarella, se no final para uma cerveja artesanal na Cerveteca de Lisboa, mas o que é certo é que só por aqui ficamos dois minutos e trinta e três segundos, pelo que há que chegar de forma célere ao cruzamento que liga à “Travessa de São José”. Nesta, o minuto e meio que temos é suficiente para irmos até ao fim tranquilamente. Ao chegar ao cruzamento poderíamos virar à direita para ir beber um copo ao Foxtrot, mas optámos por seguir em frente, conseguindo que, mesmo não mudando de direcção, entremos numa nova rua, a “Rua de São Marçal”. Chegando ao Bistro Edelweiss virar à esquerda, e seguir recto, “Rua Academia das Ciências” fora, são 300 metros que temos pela frente e seis minutos e vinte e três segundos, insuficientes para apreciar convenientemente a beleza interior da Academia que dá nome à rua. Chegando ao número 2 há que baixar a cabeça para se passar por baixo do Arco a Jesus, que antigamente era o “responsável” pela toponímia do local onde nos encontramos. Eis que chegamos à “Rua de O Século”, local onde o famoso jornal se produziu, entre 8 de Junho de 1880 e 12 de Fevereiro de 1977. Marca também pelo chafariz, que abastecia as redondezas, e seu espaçoso largo. Aqui o passeio cruza-se também com a história do Altamont – foi no bar O Século que se deram as primeiras sonorizações de espaços da nossa parte, no já longíquo ano de 2010.
Mais à frente há que tomar a esquerda para subir a “Rua João Pereira da Rosa” e assim contornar a Escola de Dança do Conservatório Nacional, edifício ícone da capital mas que se encontra actualmente com graves problemas estruturais. Será sempre a subir (daí ser necessário quatro minutos) até chegarmos ao Jam Club, bar com música ao vivo e animação sempre a acontecer (por lá já nos encontrámos com Manuel João Vieira). Tomamos então a “Rua dos Caetanos”, onde impera a Escola de Música do Conservatório Nacional. Voltamos a cruzar com o Altamont – é aqui que fica a porta das traseiras do Teatro do Bairro, onde realizámos os primeiros e míticos Baile Rock. Neste caso, não vamos até ao fim – viramos antes à esquerda para a “Travessa dos Fiéis de Deus”, que temos cinco minutos e dezanove para percorrer. A viagem termina precisamente na Galeria Zé dos Bois, esquina (im)pertinente da nossa Lisboa, “Travessa dos Fiéis de Deus” com “Rua da Barroca”. Nesta nos deixamos ficar precisamente por dez minutos e trinta e três segundos, até ao terminar de Volúpias, até ao silêncio se restabelecer. Que magnífico passeio de trinta e oito minutos pelo coração de Lisboa, que é no fundo o caminho percorrido por Gabriel entre a sua casa e a ZDB.
Ferrandini, acompanhado de Hêrnani Faustino no contrabaixo e Pedro Sousa no saxofone, todos nomes sobejamente conhecidos nos corredores do jazz nacional, conjugam-se num disco que mostra a sua incrível capacidade criativa, e que resulta de uma residência artística precisamente na ZDB. A vontade de compôr, iniciada há três anos, tem aqui um dos seus píncaros, mostrando-se inventivo, indo inclusivé buscar temas de Ondness, músico na vertente electrónica e que são aqui adaptados ao universo jazzístico. A opção de um free jazz em temas curtos foge também, em si, à norma, dado que neste campo a exploração costuma levar a temas longos, mas Ferrandini quis criar algo mais acessível, sendo que só na última canção se atingem os dez minutos. Convencional não é de todo uma palavra que se faça parte do vocabulário de Ferrandini e nós só temos de agradecer por isso mesmo.