Since I Left You é leve e eufórico, quase sem gravidade. Como se nos dissesse: liberta-te do peso do passado, abandona-te ao êxtase da viagem.
’96 é o ano de Endtroducing, o primeiro disco da história totalmente feito de samples (obrigado, DJ Shadow, pela classe e poesia). Os australianos Avalanches ficaram loucos com o álbum e com toda a razão. Na senda demente de igualarem o mestre, passaram o virar do milénio enfiados em caves esconsas, ouvindo milhares de vinis empoeirados, em busca daquela precisa fracção, daquele exacto segundo. Gastaram os melhores anos da sua vida no corte e cola obsessivo-compulsivo de cerca de um milhar de samples, algo que os levou, com certeza, a muito perto da loucura. Valeu a pena? Já lá iremos.
Num típico caso de angústia de influência, fizeram tudo para esconder a sua fonte. Onde Endtroducing é contemplativo e sisudo, de uma beleza pura e abstracta, Since I Left You é narrativo e eufórico, quase sem gravidade, como se nos dissesse: liberta-te do peso do passado, abandona-te ao êxtase da viagem. Mais: transborda de sentido de humor. “Frontier Psychiatrist” é a canção pop mais engraçada de sempre, ponto. Foste, “Zuvi Zeva Novi”…
O predomínio dos timbres agudos sobre os graves – flautas, harpas, vozes femininas, sons dos primeiros vídeo-jogos, o que calhar – transmite essa ideia de leveza, de flocos e plumas coloridas flutuando ao sabor da brisa. As batidas de dança vão no mesmo sentido, evocando noites tórridas em pistas suadas até a manhã raiar. Uma falsa música de dança, porém; tudo é demasiado louco, demasiado caleidoscópico para o simplismo do chão de uma disco. São os neurónios do prazer estético que dançam; os das ancas ficam à toa, perdidos e perplexos na confusão.
Sim, valeu a pena. Cada milímetro de entrega fanática valeu bem a pena. Since I Left You é um dos discos da sua década, em nada inferior a Endtroducing. Ficarão sempre, lado a lado, como os momentos maiores do roubo como arte, ladrões, sim, mas ao serviço da beleza, robins dos bosques de bocados de pop. Há pecados assim, quase sublimes. Quando o diabo aplaude, Deus perdoa e a obra nasce.