A última noite do Festival Rescaldo começou por encher as medidas, desaguando em tédio. Ainda assim, saímos felizes.
Das três vezes que entrei na garagem da Culturgest não foi para estacionar nenhum carro. Das duas primeiras, dirigia-me a uma festa. A terceira (sábado passado), de certa forma, também. O Festival Rescaldo é uma celebração diferente – ou, pelo menos naquela noite fria, foi.
Entrar pelas escadas de serviço. Ir à casa de banho, o lento sensor da luz a fazer-me sentir que estava dentro de uma construção de betão abandonada, as luzes piscando até se fixarem numa frequência permanente. O som do ar condicionado, as prateadas tubagens no tecto, para uns devaneio risível e para outros pormenor não só arquitectural mas sonoro. Pormenor esse que me preparava para a música marginal e exploratória que na garagem já se ouvia timbrar.
O tal timbre era certeiro, pelas mãos do duo improvisacional EITR (Pedro Lopes na electrónica e Pedro Sousa no saxofone) e das baquetas de Gabriel Ferrandini. As várias superfícies da garagem pareciam ter sido construídas para aquele momento, o som efervescendo em lume brando, num acastanhado negrume de sons. Copo na mão, queixo no chão, sentimento inebriante.
FarWarmth, alter-ego de Afonso Arrepia Ferreira, tomou conta do lado contrário da garagem para fazer isso mesmo, o contrário. Se o primeiro concerto marcou pela bruma contida, a austeridade com espasmo sensato aqui e ali, FarWarmth foi estímulo do início ao fim, através de luz, cor, fumo e som digital cortante à la Ben Frost.
Por fim, a colaboração entre 10 000 Russos e Jonathan Uliel Saldanha fez torcer o nariz, pela sua desinteressante exploração da batida motorik e das paisagens siderais do seu psicadelismo escuro. A repetição da frase chata “We’re all gonna die” entediou e as máquinas da garagem pareciam querer gritar “bis” para Lopes, Sousa e Ferrandini. Infelizmente já era tarde, a garagem já estava fechada, ninguém para ouvir os seus apelos. Talvez um dia.
Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo.