Uma celebração da música portuguesa e da amizade, feita por músicos experientes que sabem o que é preciso para montar um bom espetáculo.
A Cuca Monga é mais do que uma editora. É um coletivo artístico, é uma promotora de eventos, é um grupo de amigos, como explicou ao Altamont Domingos Coimbra, dos Capitão Fausto. É, sobretudo, um conjunto de pessoas com uma enorme dedicação a todos os projetos em que trabalham e que sentem um grande prazer em ver e ajudar a fazer florescer os projetos daqueles em seu redor. Isso viu-se no disco Cuca Vida que lançaram em 2020 e que fez nascer o Conjunto Cuca Monga, assim como no catálogo que continua a crescer com novos e entusiasmantes nomes, não se cingindo apenas aos Capitão Fausto e às suas bandas satélite. Por seu turno, o festival, montado em Alvalade pelo segundo ano consecutivo, não foge à regra.

À chegada, conseguimos perceber que aquele festival não ia ser como os outros, desde logo por nos termos cruzado com vários elementos da Cuca Monga, muitos com concertos agendados para mais tarde naquele dia, a andar apressadamente de um lado para o outro a resolver problemas de última hora e a verificar se estava tudo bem. Como disse Jasmim no seu concerto, este é um festival feito por músicos, pessoas que se importam verdadeiramente com a música e que fazem isto com um propósito, dando atenção aos pequenos detalhes, e isso, inevitavelmente, transparece no resultado final. Marcou-nos também a integração perfeita do festival com o bairro, incorporando quatro espaços que se reúnem entre a rua do Centro Cultural e a rua Acácio Paiva – o Poolside, a associação cultural Appleton, o Kübe Coworking e a agência de comunicação Adagietto – assim como opções de comes e bebes providenciadas por negócios da zona. O recinto ser gratuito, permitindo que qualquer transeunte pudesse aproveitar as bancas de restauração e de merchandising, e os DJs que estiveram em ação toda a tarde e noite, foi a cereja no topo do bolo que a Cuca Monga nos confeccionou no seu bairro de sempre.
É de sublinhar ainda a relevância do local escolhido para este evento: os lugares físicos são, muitas vezes, também personagens das histórias que moldam a nossa memória e nos fazem ser quem somos. Quem não se lembra da sua primeira casa, de onde estava quando recebeu aquela notícia que lhe mudou a vida, do sítio que viu uma relação florescer. Os membros fundadores da Cuca Monga têm noção disto e cultivam a importância dos espaços, como nos disse também Domingos Coimbra. Sendo Alvalade, e em particular estas ruas, já indissociáveis da história dos Capitão Fausto (foi aqui que tiveram a sua primeira sala de ensaios e onde montaram o estúdio onde fizeram nascer a Cuca Monga), mas também da das bandas que ajudaram a crescer, este foi um feliz regresso a casa, depois de a primeira edição do festival ter acontecido junto àquele que agora é o quartel-general da editora.
Aquecimento às teclas
Esse regresso começou cedo, logo às 16h30, com uma relaxada apresentação denominada Cuca Ao Piano. No piano de cauda que seria mais tarde usado por Tomás Wallenstein, Jasmim e Benjamim, alguns elementos da Cuca Monga, entre eles parte dos Capitão Fausto e dos Salto e Diogo “Horse” Rodrigues, revezaram-se para mostrar versões de temas seus, a solo ou em conjunto. O concerto terminou com a equipa toda em palco a tocar o tema “Liberdade” do disco pandémico Cuca Vida. Um bonito e bem-disposto aquecimento para a muita música que ainda tínhamos para ver.

Entrámos pela primeira vez no palco Poolside, com neons coloridos a cobrir as paredes, para ver Femme Falafel, alter ego de Raquel Pimpão, que estava muito bem acompanhada pela sua banda (Tiago Martins no baixo, Francisco Santos na bateria e Lana Gasparotti no teclado), envergando um vestido de veludo que condizia com as cores da sala. Sem pedir perdão, cantou-nos – e fez rap – sobre o matriarcado, com “Romance Feudal”, problemas de coração, em “Electrocardiodrama”, questões climáticas e outros assuntos menos nobres – “Gajos”. Um jogo inteligente e pouco ingénuo de letras ácidas cantadas por uma doce voz junta-se à experimentação sonora numa soma de ingredientes para uma jam cool, que pede dança a todos os que tiverem o prazer de ouvir. A verdade é que Femme Falafel tem muita graça, porque dispõe de um talento nato para escrever poemas cómicos sobre as questões mundanas que tocam a quem vive em sociedade e fá-lo com seriedade e auto-confiança em partes iguais. A canção “Livre Arbítrio” é uma balada triste sobre a chatice que pode ser uma simples tomada de decisão e “Taj Mahal” uma música pimba que podemos dizer ser sobre monumentos. O korg-rock de Raquel Pimpão fez bater o pé a muita gente e acabou com o single de 2022 “Depressão”, encantador na sua honestidade bruta.
Tomás Wallenstein apresentou no palco Adagietto as versões que gravou este ano no álbum Vida Antiga. Perante uma plateia bastante composta e sentada no chão verde daquela sala, como se de um relvado se tratasse, Tomás terminou o seu concerto de fim de tarde com “Eu vim de longe, Eu vou pra longe”, de Zé Mário Branco, cujo refrão o público ficou a entoar enquanto o artista deixava o palco. Findo o coro, levantávamo-nos, pois havia outros concertos a acontecer e as salas tinham lotação limitada, facto que descobrimos quando não conseguimos lugar para ver A Sul a tocar com Francisco Fontes no terraço do palco Appleton. Mas o espetáculo tinha de continuar e rapidamente se fez hora de ir ver Jasmim. Este deu um concerto calmo e atmosférico, a condizer com a sua música, nomeadamente com o último álbum, Acordado ou a Sonhar, que dominou o alinhamento. Jasmim passou a maior parte do concerto ao piano (de cauda, cuja qualidade muito elogiou) e foi acompanhado por uma segunda voz e por um lindo clarinete baixo. “Aqui Não Falta Nada” e “Acordado ou a Sonhar”, do disco de 2021, antecederam duas canções novas, ainda por lançar. Depois de dar os parabéns à organização pela capacidade de montar um festival de dimensões relevantes com escassos recursos, e de agradecer o convite, Jasmim pegou numa guitarra portuguesa para tocar “Campo/Cidade”, o single novo lançado em conjunto com Bia Maria e gravado por Domingos Coimbra e por Diogo Rodrigues. Explicando que a canção foi escrita quando Jasmim e Bia foram convidados pela Cuca Monga para darem um concerto juntos, o músico pediu desculpas antecipadas caso fizesse má figura a tocar um instrumento que não dominava, e instou o público a acompanhar caso soubesse a letra, pedido a que a assistência acedeu de bom grado.

O Rock está de boa saúde
Por esta altura já Salto começavam o seu concerto do outro lado da Rua do Centro Cultural. A banda do Porto tocou canções do seu disco de 2022, Língua Afiada, a celebrar 1 ano de vida, mas também clássicos mais antigos como “Deixar Cair” – “Esta já devem ter ouvido em casamentos” – ou “Por Ti Demais” do primeiro álbum. “Afio a Língua” e “Aos 30” do disco mais recente arrancaram coros da plateia lotada que estava claramente entusiasmada por ver os Salto em excelente forma e num espaço que permitia aquele tipo de proximidade. De destacar também foi a versão de “Não Me Arrependo” de Caetano Veloso.
Enfim conseguimos subir ao palco Appleton, um terraço sobre Alvalade com a plateia sentada no chão virada para o céu e que nos pareceu o espaço ideal para receber a música de Gorjão, sozinho ao piano com a sua potente voz. Em tom bem-disposto e teatral, tocou o seu primeiro single “Cedo Demais”, entre temas por lançar, que sairão no disco de estreia em 2024, como “Formiga”, “A Chave” e “Esperar”. Em constante diálogo com o público e com uma noite de quase verão como plano de fundo, Gorjão despediu-se com “Cada Um”, de B Fachada, um dos poucos artistas nacionais sem presença marcada no festival, como referiu. Foi bonito e próximo das pessoas, este espaço acolhedor, a que se seguiu a nossa breve passagem pelo palco Adagietto para espreitar Miguel Marôco, que cantava ao piano. Quem estava a meio da sala tinha de dividir a sua atenção entre o concerto e as conversas paralelas ao fundo e a falta de entusiasmo da plateia motivou-nos a rumar ao palco Kübe, onde Samuel Úria já tocava os primeiros acordes.

A ligação de Samuel Úria à Cuca Monga e aos Capitão Fausto é uma de admiração mútua e já tem alguns anos. Domingos Coimbra confessou ao Altamont que o músico de Tondela era uma inspiração para uns jovens Capitão Fausto e quem não se lembra do concerto que deram juntos na LX Factory, em 2016, intitulado “Um Casamento Arranjado”? Faz, portanto, todo o sentido que Samuel Úria tenha integrado o cartaz do festival Cuca Monga, apesar de este estar em crer que ali estava para preencher algum tipo de quota ou para responder a alguma lei da paridade que protege os mais velhos – “acho que a idade dos Capitão Fausto somada não perfaz a minha”, disse-nos. “Três deles são meus filhos, os mais lindos”. Independentemente do porquê do convite, Samuel Úria respondeu com a classe e a boa onda que o caracteriza, tendo-se apresentado sozinho no palco Kübe, para ali mostrar as suas canções acompanhado apenas por guitarras (usou três) e um ocasional instrumental em playback quando as canções não suportavam tão bem as versões minimalistas. “Essa Voz”, do disco que completou este ano uma década, abriu o concerto que percorreu de forma relativamente homogénea todos os álbuns de Samuel Úria. A canção de protesto “Fica Aquém”, “Espalha Brasas” ao banjo, ou “A Contenção” arrancaram coros devotos do público, que não foi demovido pelo calor que se fazia sentir dentro da sala, mas Samuel Úria guardou o melhor para o fim: depois de “Não Arrastes o Meu Caixão” e “Barbarella e Barba-rala”, e com o instrumental de “Fusão” a vir do PA, Samuel apresentou em Alvalade um solto e quente gingar de anca, facilitado por não estar a tocar guitarra e que fez, sem dúvida, subir ainda mais a temperatura da sala, contradizendo o que as afirmações iniciais sobre ser o mais velho do cartaz poderiam indicar. O concerto terminou com “É Preciso que Eu Diminua”, outro belo clássico. Dali, Samuel Úria terá seguido para um gelado na Conchanata; já nós, seguimos para mais concertos.
De volta ao palco Poolside, os Hércules já aqueciam o espaço com o seu pop-rock groovy, tocando mais do que falando com o público e cobrindo ambos os álbuns da sua discografia, Tarefas Modernas e Clube de Recreio. “Entre Amigos”, “Sem Guita” e “Barbosa, Pt.1” foram alguns dos temas que mais puseram a plateia a dançar, havendo, porém, espaço para a auto-declarada baladinha de “Adeus, Baby”. Não obstante as reconhecidas teclas de “‘Tás a ir Bem” e a icónica “Só Quero” terem feito um espetáculo dinâmico e inquieto, sentimos que o concerto podia ter tido, em geral, mais força.

Força parece não ter faltado no concerto de Benjamim, no Adagietto. Apesar de ter começado ao piano com “Volkswagen”, o set foi bastante electrónico. Samuel Úria apareceu para fazer uma perninha e tocar “Os Raros”, num bonito aperitivo para o concerto que darão juntos no Tivoli no próximo dia 4 de Novembro, mas a festa seguiu dançante com as canções de Vias de Extinção, como “Ângulo Morto”, “Incógnito” e “Vias de Extinção”. Quem saiu mais cedo para assegurar um bom lugar no Kübe para ver os Capitão Fausto terá tido as suas razões, mas a verdade é que perdeu um soberbo final. “Terra Firme”, do disco 1986, já é quase um hino, não tendo sido, por isso, uma surpresa, quando o público que enchia a sala começou a entoar a letra em peso. Mas chegada a parte final, o público assumiu o controlo do espetáculo e ficou em loop a cantar “Leva a bandeira, carrega o pesadelo”, não deixando Benjamim – em lágrimas – acabar a canção. Este acabou a sair de palco comovido e nós, comovidos com ele, ficámos a refletir sobre a sorte que é poder assistir a concertos dos músicos que adoramos e sobre como o ambiente naquele festival é, de facto, especial.
O moche suado dos Capitão Fausto
O Kübe estava cheio e quente, à espera do último concerto da noite, em que os Capitão Fausto tocariam Capitão Fausto Têm os Dias Contados na íntegra, o seu terceiro álbum, gravado naquela rua, umas portas ao lado. Mal entraram em palco e os primeiros acordes de “Morro na Praia” soaram, ficou claro que a voz de Tomás Wallenstein teria de partilhar o destaque com as vozes do público que devolviam cada palavra e cada malha da guitarra ou do teclado com o dobro do volume. Visivelmente felizes e emocionados por estarem a tocar num local com tanta história para a banda (foi naquela garagem que tocaram juntos pela primeira vez, contou ao público Tomás Wallenstein), os Capitão Fausto souberam aproveitar bem a energia do público e a apoteose de se saberem também responsáveis por estarmos todos ali, mais um momento de confirmação de que não só (ainda) são uma das mais relevantes bandas nacionais da atualidade como também que as suas aventuras enquanto produtores de eventos continuam a revelar-se frutíferas. Findo o disco que os levou ali e depois de “Alvalade Chama Por Mim”, tocada no respectivo ground zero, e dos devidos agradecimentos, o público, sedento, pediu mais e a banda não demorou a aceder – “tocamos mais 5” – prometeu Domingos – “mas só se vocês fizerem ainda mais calor”. E foi calor que se fez sentir. Depois de “Lentamente” e “Faço as Vontades” do disco mais recente, rebentou um moche suado aos primeiros acordes da velhinha “Música Fria”, que não parou quando rapidamente seguiram para a já clássica “Santa Ana”, nem quando Domingos Coimbra se juntou também ao moche, de baixo ao pescoço e tudo. Feito o miminho aos fãs mais antigos e voltando aos hits mais recentes, “Boa Memória” fechou o alinhamento e trouxe os cinco Faustos, todos emocionados e satisfeitos com o seu trabalho (não só ali como durante todo o dia), à frente do palco para agradecerem e para se despedirem. O público, que ainda não tinha as medidas totalmente cheias, pediu a “Teresa”, a “Creep” da banda de Alvalade, pedido que Tomás, Domingos, Ferrari, Manel e Salvador não tiveram problemas em aceitar (e ainda bem).

As ruas de Alvalade viram nascer os Capitão Fausto e mudaram a sua vida. O seu concerto, que fechou maravilhosamente a noite aquecida pelo calor do sol e pelo calor dos corações, palpitantes e entusiasmados, foi mágico. Não usamos esta palavra pelo seu valor místico, mas pela sua capacidade de encapsular todos os sentimentos vividos e sentidos dentro das paredes do Kübe. A plateia sabia as letras todas de cor, de fio a pavio, que entoava o mais sonoramente possível, e a banda retribuía o carinho com os seus sorrisos mais sinceros. De lágrimas nos olhos e a certeza, esperamos, de que são muito importantes para muitas pessoas, os Fausto tocaram de corpo e alma, celebrando a sua história e tudo o que conquistaram. Do outro lado do palco, eram muitos os corpos em festa e as vozes que lhes devolviam o amor.
Texto e Fotografias por Ana Catarina Tiago e Ana Lúcia Tiago