Deixou-nos Fausto, um dos maiores criadores da música portuguesa. Fica a breve crónica de um viageiro da canção e da palavra
Carlos Fausto Bordalo Dias nasceu no meio do mar. A 26 de Novembro de 1948, vem ao mundo a bordo do navio Pátria, na viagem entre Portugal e Angola. Pode ser só uma das coincidências da História, mas estava aí tudo. A diáspora portuguesa, a identidade complexa deste país, o caminho sempre em viagem, e o mar. Só faltava a música, mas o ritmo das ondas cuidou disso nos primeiros dias.
De uma família originária da Beira Alta, Fausto passaria toda a juventude em Angola, e foi aí que deu os primeiros passos na música. Na origem estava o ritmo, e a viola que sempre o passaria a acompanhar e do qual era intérprete exímio. É de então a sua primeira banda, de inspiração ié-ié, com o sugestivo nome de Os Rebeldes.
Aos 20 anos vem para a Metrópole estudar e entra de chapa no ambiente musical que então fervilhava no meio estudantil. Era o tempo da balada e da música de intervenção, algo que o consome de imediato. Depois de algumas tentativas a roçar o rock, é esse o caminho que segue, de cantautor, de criador das suas próprias canções, tanto as músicas como as palavras.
Em 1969 lança o primeiro EP, homónimo, tal como o seu primeiro LP, que é editado no ano seguinte. É dessa altura o início de uma intensa relação com as maiores figuras da música portuguesa mais engajada, como Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Manuel Freire ou os exilados Luís Cília e José Mário Branco.
Fausto, como todos esses grande vultos, tocava muito e nem sempre nas melhores condições, algo que o incomodava devido ao seu perfeccionismo crónico. Ainda assim, recordava com carinho esses tempos e o período do PREC, pelo contacto com as populações, que acabou por moldar decisivamente a sua postura política e cívica.
Pró que der e vier, de 1974, e Beco com saída, do ano seguinte, são discos explosivamente políticos mas que já deixam pistas para um certo tipo de lirismo mais aberto que ele viria a explorar mais tarde. O próprio autor admitiria que, não renegando nada do que havia feito, havia tomado certas liberdades e certas opções que, mais tarde, não lhe agradavam. Sinal dos tempos revolucionários, sem dúvida. Ainda em maio de 1974 está na origem do GAC – Grupo de Acção Cultural, juntamente com José Mário Branco e outros artistas, mas acaba por se afastar algum tempo depois.
Esses discos e a associação a esses artistas (e outros, como Vitorino ou Júlio Pereira, por exemplo) acabou por defini-lo como “cantor de intervenção”, embora, como quase todos eles, tivesse evoluído e sido muito mais do que isso. Madrugada dos Trapeiros, de 1977, é um disco de transição, e a primeira grande obra de Fausto. Aí está ainda a mensagem social mas há espaço para o amor, para temas mais abstratos, e desenha-se finalmente o estilo que acabaria por marcar a sua obra: um maravilhoso casamento entre música e letra, inventividade rítmica, uma harmonia entre a música popular e tradicional portuguesa com influências africanas. No trabalho seguinte, Histórias de Viageiros, de 1979, há uma espécie de ensaio geral para a obra-prima que se seguiria. Desde a capa ao nome de algumas músicas – “Peregrinações” ou “Nau Catrineta”, esboçava-se na sua mente a análise desse passado colonial e de descobertas de Portugal – ao mesmo tempo medonho e inspirador, criminoso e esperançoso. Mas não era ainda um disco conceptual, algo que viria a seguir.
Em 1982, é editado o brilhante Por este rio acima, a sua obra-prima indiscutível e um dos melhores discos de sempre da música portuguesa, de qualquer época. Partindo do texto de “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, Fausto dá-nos um disco duplo carregado de ambição, grandes músicas, virtuosismo de composição, uma fusão incrível de música tradicional portuguesa e influências de todos os lugares por onde os portugueses passaram. Um casamento perfeito entre palavra, música e ritmo, que para sempre ficará como o seu trabalho de referência.
Este colosso seria o primeiro tomo de uma trilogia dedicada à diáspora portuguesa. Em 1994 sai o magnífico Crónicas da Terra Ardente e, em 2011, Em busca das montanhas azuis, que acabaria por ser o seu último disco de originais. Pelo meio houve ainda O despertar dos alquimistas, de 1985; Para além das cordilheiras, de 1987, inspirado no tema da emigração portuguesa para a Europa; o fantástico A preto e branco, de 1989, cruzamento assumido e prazeroso entre as músicas portuguesa e africana; e ainda A ópera mágica do cantor maldito, de 2003.
Fausto editou pouco para tão longa carreira e tão forte marca que sempre imprimiu na música portuguesa. Da mesma forma que, ao longo do tempo, foi dando menos concertos e até entrevistas. Tipo reservado, até tímido, nunca soube verdadeiramente alimentar uma imagem pública que o pudesse favorecer comercialmente ou tornar mais conhecido das novas gerações. Os seus discos saiam quando estavam prontos, o que significava cada vez mais anos de duro e meticuloso trabalho até estar tudo no ponto, como ele queria.
Ainda assim, muitas das suas músicas estão no imaginário colectivo dos portugueses, que com elas cresceram e viveram ao longo das últimas cinco décadas. E, diga-se, é difícil encontrar qualquer músico de qualidade português que não aponte Fausto como um dos maiores vultos de sempre da música portuguesa. Zeca, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Jorge Palma…e Fausto, pois claro, compõem esse Mount Rushmore de pais fundadores da canção em português.
Podia ser mais conhecido, mais ouvido, mais celebrado, sim. Mas os seus ecos, na verdade, estão por todo o lado, desde os discos óptimos de malta mais nova como os Zarco ou Benjamim ao cuidado com a palavra que tantos novos cantautores demonstram. Tudo isso vem, de linha directa ou diluído na genética colectiva, desse criador.
E não esquecer que, para além da produção própria, foi presença importante em inúmeros discos de outros artistas nacionais, contribuindo com o seu conhecimento, método e sentido musical enquanto produtor, instrumentista ou responsável pelos arranjos.
Em novembro de 2022, Fausto protagoniza um muito ansiado regresso aos palcos, para celebrar os 40 anos de Por este rio acima. Em dois dias, a Aula Magna presenciou um ritual agridoce. Por um lado, tínhamos ali o homem, connosco, a tocar e a trazer de volta a sua obra-prima; por outro, já não tínhamos ali o homem, claramente debilitado fisicamente e com as suas capacidades diminuídas.
Não deixou de ser triste ver aquele perfeccionista a falhar algumas entradas e a já não ter pedalada para acompanhar aquilo que escrevera, tantos anos antes. Salvou-se, salvou-nos a todos os que lá estávamos, a banda que o acompanhava – com muitos jovens enérgicos a ampararem solidariamente o grande mestre – e o público, enternecido e disposto a relevar uma atuação menos boa, para que ele soubesse, talvez pela última vez, o quanto o amávamos.
E assim continua.
O barco partiu, ficamos na margem a acenar. E a cantar.