Ah, os gloriosos anos 90.
A 7 de Abril de 1998 estive no Coliseu dos Recreios, naquele que viria a ser o último concerto dos Faith No More (FNM) durante dez anos. Era a terceira vez que os via ao vivo, depois da primeira parte de Guns n Roses no Estádio de Alvalade e num espectáculo em nome próprio no Campo Pequeno. 13 dias depois do Coliseu, era oficial, a banda acabara “amigavelmente”.
Foi aí que terminou a última parte da primeira vida da banda, que mesmo até então foi marcada por conflitos, saída e entrada de membros (é um cemitério de guitarristas), êxitos, fãs leais, hardcore e romance. Depois, nos 11 anos seguintes, só houve nostalgia e silêncio da banda que influenciou gente desde os Nirvana, os Alice in Chains, os Metallica ou os próprios Guns.
Em 2009, surge uma reunião para tocar ao vivo, coisa que foi sendo feita, de forma intermitente (mas com passagem bem sucedida por Portugal) até 2014. Até que surge uma mensagem no site da banda: “A ‘Reunion Tour’ acabou. Em 2015 as coisas vão ser diferentes”. E o resultado chegou, com o primeiro disco de Faith No More em 18 anos: Sol Invictus.
Para situar este disco é preciso, mais uma vez, ir atrás. Angel Dust, de 1992, marcou o pico da carreira destes rapazes. O facto de o disco (já o seu quarto) ter surgido em plena enxurrada grunge levou muita gente ao engano e a coloca-los no mesmo saco. Nada a ver. Até 1992, os FNM faziam uma espécie de hip-hop rock, com algum funk à mistura, uma espécie de Red Hot Chili Peppers com heavy metal nas veias. Com Angel Dust, foram metidos na gaveta grunge, da qual nunca comungaram nada a não ser espaço nobre na saudosa MTV de então. Mas, já nessa altura, os FNM eram inqualificáveis. O seu som, fruto da forte e ampla raiz do “rock”, era uma misturada de tudo: metal, pop, funk, hip-hop, e até calypso e música de casino. As imagens de marca eram três: o registo épico com base em sintetizadores tudo menos saltitões; as guitarras a roçar o metal; e uma inesgotável capacidade de, absorvendo e devolvendo todas as influências, conseguirem envolver sempre tudo em melodias pop de primeira água.
Isto era verdade em 1992, continuou a sê-lo nos dois desvalorizados discos seguintes, e é verdade em 2015.
Com Sol Invictus, temos os Faith no More de volta. Isto quer dizer, muito simplesmente que aos primeiros segundos de cada tema é inegável que banda estamos a ouvir. Ninguém faz aquele som, ninguém agrega tamanha agressividade e tamanho sentido da melodia, ninguém compõe desta forma, ninguém oscila – entre o canto perfeito e o grito raivoso – como Mike Patton.
O disco começa com o tema “Sol Invictus”, um dos primeiros avanços do álbum. É uma melodia simples, lenta, ameaçadora, com um refrão bonito mas com nuvens por cima, parecendo sempre prestes a ser palco de uma típica explosão à la Faith no More, mas que nunca chega.
A explosão está guardada logo para o tema seguinte, “Superhero”. Aqui sim, um tema vintage da banda, movido a baixo pulsante, a guitarra e a bateria, com Patton vestindo o seu fato de psicopata, enquanto canta sobre o perigo dos que se acham “leaders of men”. Um dos pontos altos, logo a abrir.
Segue-se “Sunny Side Up”, mais uma vez com o baixo de Billy Gould a mover as coisas, num tema pop e desiludido, que prometeria fazer história na tabela dos singles, se tal coisa existisse neste universo de boys-band e ringtones.
“Separation Anxiety” é um dos temas mais negros da carreira da banda. Patton canta impaciente, como um lobo que ronda nervosa e ansiosamente a cabana do capuchinho vermelho. Quem temia que os FNM tivessem amaciado com a idade, aqui fica a prova de que tal não aconteceu.
“Cone of shame” vai pelo mesmo caminho. Um começo incómodo e de mansinho, até descambar numa clareira de gritaria a roçar o hardcore dos velhos tempos.
Segue-se “Rise of the fall”, assente num estranho arranjo rítmico quase de cha-cha-cha, mas que se desenvolve em crescendo até redundar num tema clássico Faith no More, com os sintetizadores a forçarem a nota épica.
“Black Friday” traz-nos uma rara guitarra acústica. Mas calma, isto não são os Extreme, e as seis cordas servem apenas para conduzir a primeira parte do tema até Patton começar a gritar “Buy It!”, dando a deixa à guitarra eléctrica para começar a fazer estragos. Um dos temas mais ligeiros e mais descontraídos do disco, trazendo de volta o estilo cool de Patton de entregar a letra quando não está virado para a gritaria. Mais um compêndio de músicas dentro de uma música, desta feita dedicada ao alegre consumismo que nos aliena.
A temperatura volta a subir, e de que maneira, com “Motherfucker”. Um dos primeiro temas do disco a ser avançado em concerto, a agressividade vem, aqui, da letra, uma diatribe zangada e crítica contra as mentiras do modelo actual de sociedade.
“Matador” é uma canção movida a piano, instrumento que Patton assumiu ter desempenhado um papel importante na composição da estrutural de muitos dos temas. É talvez a música menos memorável do disco, embora tenha potencial pop. É salva sobretudo na parte final, uma aceleração típica dos Faith no More dos anos 90, que faz tudo valer a pena.
A despedida faz-se, ironicamente, com “From the dead”, que ilustra bem o regresso do além destes norte-americanos a rondar os 50 anos. Aqui temos novamente a guitarra acústica, desta feita como estrutura do princípio ao fim da canção, num tema pop e positivo que é o joker do disco, parecendo relativamente deslocado e não fazendo nele grande falta.
Em suma, Sol Invictus é um belo cozinhado do típico guisado Faith no More. Influências, estilos, músicas dentro de músicas, agressividade, crítica social, irreverência. No plano alargado da carreira desta banda, fica talvez aquém da energia quase adolescente de The Real Thing, ou da magnificência opulenta de Angel Dust, o disco no qual todos os astros se alinharam para deixar para a história um registo perfeito. Para nós, é um regresso de uma banda que tem uma voz e que, tanto tempo depois, não a perdeu nem a diluiu. Para os fãs, será um regalo. Para os outros, um disco que ignorarão, para mal dos seus pecados.
O mundo, em 2015, precisa de mais discos, e de mais bandas, assim.
Grande