O terceiro álbum dos Faith No More, The Real Thing, já com Mike Patton ao leme, foi um dos primeiros exemplares de rock alternativo a chegar ao mainstream. A sua profusão esquizofrénica de estilos – rap, metal, funk, o diabo a sete – foi muitíssimo influente.
O rock nasceu do blues, um encontro mágico entre música branca e música negra que mudou a pop para sempre. Para onde quer que o rock vá, esse ponto de referência é incontornável: ora afastando-se da inspiração negra – o punk e o thrash são branquíssimos, zero de curvas dançantes do rhythm & blues-, ora regressando ao seu primeiro amor, devolvendo-lhe calor e groove. Em meados dos anos 80, os Red Hot Chilli Peppers (primeiro) e os Faith No More (logo a seguir) escolheram este último caminho, trazendo para o rock o balanço gingão do hip-hop e do funk: rappando, roubando a Sly Stone o baixo metálico e percussivo, sincopando o ritmo.
Se ambas as bandas partilham esse ADN james-brown-iano, os temperamentos são opostos: os Red Hot são soalheiros e foliões como a sua Los Angeles, discípulos da loucura e parvoíce do mestre George Clinton; já os Faith No More são mais densos e sombrios (há menos sol em San Francisco), descendentes por linha travessa da neura pós-punk. Quer um, quer outro, passaram os anos 80 a pregar no deserto (com a honrosa excepção do rap roqueiro da Def Jam, vá), até que no virar da década o fenómeno extravasa para o mainstream.
The Real Thing (’89) dos Faith No More faz o primeiro assalto, com o single “Epic” (’90) subindo ao 9º lugar da tabela de vendas, para grande inveja dos rivais Red Hot (houve mesmo troca de mimos entre Anthony Kiedis e Mike Patton, mas não iremos por aí, isto não é a Caras Rock). Está o caminho aberto para a explosão do funk metal dos anos 90: os Chilli Peppers com o ubíquo “Give it Way” em ’91, os Rage e os Body Count destilando raiva em’ 92, The Judgement Night subindo os decibéis dos cinemas em ’93, e o início da decadência nu-metal em’ 94, quando os Korn pegam nas canções mais a abrir dos Faith no More e lhes retiram a imaginação melódica e o sentido de humor. A partir daí, foi sempre a descer: Limp Bizkit, Papa Roach, Linkin Park…
Talvez Angel Dust (’92) seja a sua obra-prima – pelo menos, é mais louco – mas nenhum álbum dos Faith No More foi mais relevante do que The Real Thing (’89): uma das primeiras rodelas a captar os novos ares do tempo, prenunciando – dois anos antes de Nevermind – a explosão do rock alternativo.
We Care a Lot (‘ 85) e Introduce Yourself (’87) já eram bons discos mas tinham um ligeiríssimo senão: Mike Patton ainda não estava lá. Não queremos com isso menorizar o vocalista original: o que faltava a Chuck Mosley em afinação e polivalência, sobejava-lhe em estilo e atitude. Apenas pretendemos sublinhar as características sobre-humanas da voz de Patton, subindo e descendo os degraus de seis oitavas!, já para não falar na sua insana versatilidade de timbres e entoações: a doçura sussurante de “Zombie Eaters”, os gritos quase death metal de “Surprise! You’re Dead”, o rap fanfarrão de “Epic”, o crooning irónico de “The Edge of the World”. É Patton que catapulta a banda para a primeira divisão, que não haja dúvidas a esse respeito.
Mas os Faith No More sempre foram muito mais do que o talento de um só homem. Quando Mike Patton chega, a parte instrumental de The Real Thing já está integralmente gravada. Mike teve apenas de escrever as letras e as melodias vocais, não podendo mexer um milímetro no fundo musical. Patton não deve ter achado grande piada à coisa, mas, acabadinho de chegar, anuiu. Há quem diga que a voz anasalada que domina The Real Thing (um pouco irritante, de facto) tenha sido uma espécie de vingança de Mike Patton contra os seus camaradas. Não compramos essa teoria da conspiração: no álbum homónimo de Mr. Bungle (’91) encontramos o mesmo registo insólito de desenho animado; uma decisão puramente estética, afinal.
O que é maravilhoso em The Real Thing – e em qualquer disco dos Faith No More, convenhamos- é a rebeldia da sua criatividade, ignorando todas as regras, derrubando todas as fronteiras, abraçando todas as contradições. The Real Thing é bizarro mas melódico, pesado mas orelhudo, groovy mas sombrio. Nenhum rótulo que lhe queiram pôr faz justiça ao seu espírito indomável. Como chamar-lhe alternative metal quando há o smooth jazz de “The Edge of the World”? A guitarra quase thrash de Jim Martin é apenas uma das cores da paleta, em pé de igualdade com as teclas góticas de Roddy Bottom (imortal o piano assombroso do final de “Epic”), o baixo funky de Billy Gould (slap simples mas sempre memorável e eficaz) e a bateria groovy de Puffy (tão certeira em “War Pigs” que os próprios Sabbath o recrutariam mais tarde).
Vale tudo menos arrancar olhos em The Real Thing: o thrash demolidor de “Surprise! You’re Dead!”, o instrumental arabesco à “Kashmir” de “Woodpacker from Mars”, o majestoso prog metal da canção-título, a pop bem disposta de “Falling to Pieces” e “Underwater Love”, o rap que atravessa quase todo o disco. O que The Real Thing nos fez, então, aos nossos cérebros adolescentes foi expandir vertiginosamente os nossos horizontes estéticos. Aprendemos que o belo não tem regras. E assim ficámos maiores.