Se um extraterrestre aterrasse na nossa sala e nos exigisse as amostras mais relevantes do conceito Pink Floyd, teríamos de lhe entregar pelo menos três discos: The Piper at the Gates of Dawn, The Dark Side of the Moon e The Wall. Cada um deles marca o ponto alto de três fases distintas dos Floyd: Piper é dominado pela inocência psicadélica de Syd Barrett, gravado pouco antes de este tragicamente enlouquecer; Dark Side é o cume da fase democrática, onde todos – Waters, Gilmour, Wright e Mason – lançam trunfos para a mesa; The Wall representa o golpe de estado de Waters, a partir do qual este segura, ávido e prepotente, o leme criativo da banda.
Se o alienígena, invocando o tamanho da sua nave espacial, reclamasse apenas a obra-prima, teríamos de o elucidar – com toda a delicadeza, alguns ETs não gostam de ser contrariados – que não é possível estabelecer um termo de comparação pois cada um leva ao limite três sensibilidades muito diferentes: Piper é pura poesia; Dark Side é doce tragédia; The Wall – grandiosa epopeia.
Se, já um pouco irritado, com o seu terceiro tentáculo mexendo agora nervosamente no coldre da sua pistola de laser, o monstrengo nos dissesse que só nos açambarcava a porra de um disco e ponto final!, mandaria o bom senso que lhe respondêssemos: “Pronto, está bem. Tu é que sabes. Leva só o The Wall. Os outros também são bons que se fartam mas este ao menos tem muito mais músicas.”
Todo este filme de série Z pode parecer fortuito mas chama-nos a atenção para um facto importante: que febril a criatividade de Waters aquando da feitura de The Wall. Nunca antes igualada. Nunca depois igualada.
A ideia para este disco duplo nasceu de um incidente decorrido num concerto, quando os Pink Floyd eram já uma gigantesca banda de estádio (o que aconteceu a partir de 1973, com o inesperado sucesso de Dark Side of the Moon). Estávamos em 1977, promovia-se o Animals com a digressão “In the Flesh”, quando Waters cospe na cara de um fã que invadira o palco. Roger ficou chocado consigo próprio. A partir desse momento, um estranho desejo começou a persegui-lo: e se nos concertos um muro alto se erguesse entre o palco e a plateia, protegendo a banda de uma cada vez mais incómoda audiência e abrigando a audiência dos seus acessos de mau humor? Como sempre, o baixista fazia das suas fraquezas forças. Tinha acabado de descobrir o conceito para o novo álbum.
Toda esta ópera-rock é uma tentativa de Waters responder à seguinte pergunta: como pôde ele – pacifista desde a sua adolescência e humanista nas horas vagas – ter tido aquele gesto tão primitivo? Era certo que detestava concertos de estádio, modernos rituais de guerra, mais “de guerra” do que “modernos”. Neste habitat despersonalizado, a violência entre banda e audiência era o estado natural, uma espécie de relação sado-masoquista com fios de microfone no lugar dos chicotes. Ainda assim, o baixista recusou a boleia destas desculpas. Era preciso ir mais fundo, escarafunchar a sua própria biografia, problematizar a sua própria geração. Com efeito, se desde o Dark Side of the Moon Waters tinha chamado para si a tarefa de desenhar o conceito dos álbuns e as respectivas letras, só agora em The Wall a sua escrita se torna descaradamente autobiográfica, dançando à vista de todos com os fantasmas pessoais antes escondidos no armário (como a sua orfandade e o trauma da infidelidade). The Wall é esse dedo na ferida. Nas palavras, nas melodias, nos arranjos – por todo o lado esse pus e essa dor.
Foi assim aparecendo a história de Pink, alter-ego evidente de Waters (com traços aqui e ali roubados ao antigo mentor Syd Barrett). Pink é uma estrela de rock em digressão na América, que se sente cada vez mais alienado de tudo e de todos. A maior parte da acção decorre no luxuoso quarto de hotel do protagonista, em frente à televisão, metáforas evidentes de desenraizamento e solidão. Pink revive obsessivamente o seu passado: o pai morto que nunca conheceu; a mãe superprotectora até à asfixia; os professores de um sadismo que roça a psicopatia; a ascensão e declínio do seu casamento, preso por um fio. Tudo em The Wall é ao mesmo tempo pessoal e universal. O pai morto em combate, por exemplo, não é só o trauma intransmissível do filho de Eric Waters; representa também uma ferida colectiva, a dos sacrifícios de tantos na Segunda Guerra em nome de um projecto humanista que nunca se cumpriu.
Pink ainda faz uma última tentativa de salvar o seu casamento mas o feedback que encontra do outro lado da linha telefónica só confirma os seus piores receios. Cortada a última ligação com o mundo, o nosso anti-herói encontra-se irremediavelmente só. A fuga para a frente, levando para o quarto de hotel uma insinuante groupie, não o resgata da solidão. Enlouquecido, destrói cada milímetro do quarto, aterrorizando a pobre miúda que foge a sete pés. Fica então acocorado a um canto, ausente como um alho francês. Só mais tarde é reanimado pelo manager que, abutre, só tem uma preocupação: anestesiá-lo com uma qualquer droga e levá-lo entorpecido para mais um milionário concerto. Em palco, Pink delira: imagina-se um líder fascista, ordenando o extermínio dos espectadores não arianos. Como devemos interpretar esta referência nazi: falta de empatia como pedra-de-toque do fascismo ou lapso freudiano de Waters em relação ao seu próprio autoritarismo?
Nos bastidores, tomando consciência que bateu no fundo, Pink pergunta-se se não fora ele afinal sempre o culpado, o autor moral do vergonhoso “muro”. No julgamento sumário que ocorre dentro da sua cabeça – e chegámos, por fim, ao clímax da narrativa -, advogado de acusação, reitor, mãe e mulher são unânimes em considerar que ele é culpado. A sentença do juiz é impiedosa: que o “muro” seja derrubado. Por entre os escombros, Pink ensaia as suas primeiras tentativas de religação aos seus. Mas uma voz pergunta: “não foi assim que a história começou?”
O final é ambíguo, permitindo diferentes leituras. Eu prefiro a interpretação cínica: por mais que nos esforcemos, é apenas uma questão de tempo até ao próximo muro se erguer outra vez, devolvendo-nos à nossa solidão original. O próprio ambiente de azeda acrimónia que se vivia no seio da banda aponta neste sentido. Como poderia Waters advogar a possibilidade da espécie humana conhecer a empatia se durante o processo de gravação de The Wall ele não conseguia sequer conversar com os seus colegas de banda?
Muitas razões concorrem para explicar estas contendas mas uma destaca-se talvez sobre as outras: um profundo desfasamento entre ritmos criativos. Waters sofreu um estranho surto de hiper-criatividade. Das vinte e seis canções de The Wall, vinte e três foram escritas integralmente por Waters e a grande maioria seria elegível para um qualquer best of dos Floyd. E não falo apenas dos clássicos absolutos “Another Brick in the Wall, Part II”, “Mother” e “Hey You”- que, não adianta negar, todos já trauteámos bêbados num qualquer decadente karaoke; refiro-me também a temas como “Nobody Home” ou “Goodbye Blue Sky”, menos famosos mas talvez mais comoventes.
Se nos abstrairmos por momentos da comparação com Waters, e atentarmos apenas no contributo absoluto de Gilmour, não encontraremos quaisquer razões de queixa. O guitarrista até pode tocar pouco na bola mas quando o faz finta logo meio mundo e mete golo: “Young Lust”, “Confortably Numb” e “Run Like Hell” são grandes canções e as duas últimas estão mesmo entre as mais emblemáticas da banda. Teremos que procurar então as variantes noutro lado: na explosão criativa de Waters e no eclipse total de Wright. Ponham estes ingredientes juntos no mesmo estúdio e a maior banda de Cambridge estará prestes a desintegrar-se.
Wright não estava, é certo, nos melhores dos seus dias. O teclista que nos tempos de Barrett chegou a ser o “número 2” pairava agora pelo estúdio como um fantasma, não contribuindo com uma única nota relevante. Um casamento em ruínas e uma valente depressão atenuariam os seus crimes, não fora o épico mau feitio de Roger Waters. O contexto financeiro não ajudava: um enorme buraco nas contas da banda obrigava a que este disco fosse gravado em tempo recorde e Rick era absolutamente incapaz de trabalhar sobre pressão. Quando Waters pede a todos para regressarem mais cedo ao estúdio, e Wright recusa interromper as suas férias, está o caldo entornado. Furioso, Waters exige que Wright saia da banda assim que estiver terminado o álbum. Gilmour e Mason não podem acreditar no que ouvem mas Waters encosta-os contra a parede, ameaçando com o seu próprio abandono. Com a corda na garganta por causa do aperto financeiro, não têm outro remédio senão ceder à chantagem. Wright é expulso dos Pink Floyd pelos seus companheiros, Abel morto pelo irmão Caim. É com o estatuto de mero músico de sessão, pago à jorna, que Wright participa na tour de The Wall: a cereja em cima do bolo da infâmia. E quando alguns anos mais tarde Roger Waters abandona para sempre os Floyd, travando-se depois na barra dos tribunais uma luta feroz em redor do nome da banda, é ainda o espectro negro de The Wall que estende a sua sombra. “United we stand / Divided we fall”.
Valeu a pena o fratricídio? Valeu, pois. Primeiro de tudo a arte, só depois o bem e o mal. Para nós, amantes da pop, o fim nobre de um álbum perfeito justifica os meios mais canalhas, mesmo umas quantas punhaladas a um amigo. Se a malta do punk não concordará com a perfeição enquanto valor estético, dará contudo o seu aval à parte das punhaladas.
Mas esse é outro dos méritos de The Wall, a forma como os Floyd ignoraram olimpicamente o espírito do tempo, fiéis apenas a si próprios. Volvidos dois anos sobre a revolução dos Pistols, é difícil imaginar um álbum mais visceralmente anti-punk que The Wall. Senão, vejamos: é um disco duplo (vamos fazer de conta, por momentos, que os Clash nunca fizeram álbuns… triplos!); é uma ópera-rock (vamos fingir também que os Green Day não viriam mais tarde a perpetrar aquela coisa sinistra que todos sabemos que eles perpetraram); é um concept album (o punk odeia tudo, por definição; mas quando esse tudo envolve adiposos álbuns-conceito, o seu ódio ganha uma especial urticária); tem orquestras, solos grandiosos, complexos efeitos sonoros, complicadas cenografias, e, suprema indignidade, mais do que três acordes. Não há como negar: em todos os seus mais ínfimos pormenores, The Wall foi feito como se o punk nunca tivesse existido. Mais ainda: como se a imprensa musical inglesa do seu tempo não fosse dominada pela desconfiança primária a tudo o que soasse a classic rock. Nesta indiferença ao mundo, os Floyd revelaram fundamentalmente três coisas: personalidade; um esquerdo grande como um tijolo e um direito igual ao esquerdo. Morreste, amigo Sid Vicious? Never mind the bollocks.
Mas o demónio punk que habita em mim – aquele que dá pontapés de contente com o “Teenage Lobotomy” dos Ramones e adormece com a introdução instrumental de mil minutos do “Shine On You Crazy Diamond” – segreda-me ao ouvido blasfémias horríveis. Será que Johnny Rotten estava certo quando se pavoneava por Piccadilly Circus com uma t-shirt a dizer “I hate Pink Floyd”? Será que The Wall é mesmo uma obra barroca e pretensiosa demais para poder reclamar para si o santo nome do rock’n’roll? Contraporei apenas o seguinte. Quando estudava, e andava de metro, passava todos os dias por uma frase escrita por não sei quem que rezava assim: “Se eu não morresse nunca e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”. Cabrões dos Floyd que conseguiram lá chegar antes da sua própria imortalidade.
Grande texto sobre um grande disco!