Para mim a beleza vale cada vez mais por si mesma. Essa é uma das coisas que mais tenho sentido: que há coisas às quais há muito pouco a acrescentar, a apreender (o que implica inevitavelmente um processo de apropriação) ou a explicar: como o último disco de Tamara Linderman, com o curioso nome artístico The Weather Station. Deu-me pouca vontade de o desconstruir, passando-o para o papel – o que já trai a minha afeição por ele, tanto porque lhe transforma a natureza (foi feito para ser ouvido), como pelo facto desse processo ser indirecto (e eu sei incomparavelmente menos sobre ele que a sua autora: o que, sendo a minha opinião muito pouco relevante para os fãs da canadiana, valerá enfim, como a beleza, apenas por si mesmo).
De qualquer forma, se servir para que alguém oiça pela primeira vez não deixará de ser interessante (se não servir, oiço-o eu com prazer). Loyalty é um disco de folk, só que não (para utilizar a expressão que Tamara utiliza quando se refere à sua descoberta de que, afinal, as canções country não falam apenas de viagens); é um disco de uma subtileza e de um classicismo que evoca naturalmente a música folk, mas isso é dizer muito menos sobre ele do que falar dele simplesmente como um grande disco; o que conta é, afinal, muito mais o facto de Tamara ser uma belíssima compositora, independentemente do género de que se serve (ou melhor, em que a enquadramos), do que propriamente as comparações com nomes passados – o que não significa que seja possível alguém não se recordar de Joni Mitchell, se já a tiver ouvido com alguma atenção, enquanto ouve este disco (e o primeiro momento em que tal ideia passa a certeza é o início da segunda canção). Mas se recorda é pelos motivos certos: subtileza, um sentido melódico fantasticamente desenvolvido e uma recusa absoluta de um estilo histriónico, adolescente ou encoberto: Tamara conhece bem cada palavra que canta e sabe esse segredo fantástico que é conhecer a forma de as cantar e de as enquadrar na melodia com inteligência, com delicadeza e sem adornos desnecessários, tirando partido de uma voz que tudo sabe. É, sobretudo, uma compositora inteligente.
Tamara, diga-se, já foi actriz, e diz que foi na música que encontrou um caminho para se expressar verdadeiramente. Efectivamente, o disco é quase um discurso directo, dirigido a vários destinatários. Mas não tenhamos ilusões: se nem por um momento duvido que é absolutamente sincera quando diz que utiliza a música como forma de expressão sem acting, tem também a inteligência de o saber fazer: é música confessional, eventualmente, mas não cotidiana, naturalista ou banalmente auto-biográfica; é isso sim uma expressão própria da forma como vê a passagem do tempo em si e nos outros, como vê hoje as pessoas que foi conhecendo e o que a vida fez de si – ou, talvez, o que foi fazendo da vida e de si mesma. Em suma, Tamara não nos conta a sua vida, no sentido mais superficial e rotineiro do mesmo (se o quisesse fazer não a elogiaria; recomendar-lhe-ia isso sim uma monografia), mas decidindo comunicar-nos os monólogos e os diálogos (possivelmente alguns reais, a maioria imaginados) que crê poderem por um lado servir a melodia, e por outro interessar esteticamente aos outros. Tem portanto essa compreensão de que há coisas da sua vida que não interessam a ninguém (ou que não deviam interessar), passando-nos apenas o que sente ter relevância.
É o primeiro disco de The Weather Station na editora Paradise of Bachelors (editora bastante ligada à renovação da música americana em géneros como a folk, o country e bluegrass), o que lhe terá permitido “chegar” a mais gente; e é também o primeiro ano em que a oiço. Há uma tendência, provavelmente infantil, de acharmos que o agora é ou um novo começo ou pelo menos o pico de algo. Ela própria assumiu isso recentemente, referindo que provavelmente este vai ser conhecido como “o seu primeiro disco”, da mesma forma que o anterior já o foi (e é o segundo LP que diz conseguir cantar no Presente). A verdade é que All of it was mine (2011), e o EP lançado no ano passado, e What am I going to do with everything I know (2014) – fabuloso título! -, eram já discos imaculados na sua imperfeição natural: discos muito bonitos, sobretudo, sendo que Loyalty é a continuação desse percurso. É um album de sussurros, suspiros, e de uma voz cativante como poucas. Há nele “The way it is and the way it could be”, uma canção sobre estradas, rios e janelas (lá está: “só que não”), de ritmo mais acelerado que as que se seguirão (mas onde Tamara sabe desacelerar e dosear a velocidade, trabalhando-a com a orquestração), onde nessa espécie de diálogo atira acidamente “You always tell me the truth – even when it hurts me or it hurts you. / Could you go a little easy, would it kill you?” para de seguida atirar com um belíssimo “I’m gonna count on / I’m gonna hold out for – nothing much. / A little kindness, a little praise some days / I get so close but I don’t really touch / – what I get, or what I need – / the way it is the way it could be”. Há a seguríssima “Flood Plan” – onde, com maturidade, Tamara canta “I don’t expect your love to be like mine / I trust you to know your own mind / As I know mine” -, para mais tarde nos contar a confusão dos seus sentidos – “I feel like I’m seeing double / all joy and all trouble”. Ouve-se a belíssima (e lentíssima, quase falada, como se estivéssemos a ouvir um conto musicado) “Personal Eclipse”, onde há um olhar saudoso para o Passado (“Lately, I find myself lonely / I wouldn’t have called that before / I always took it as a comfort”) e uma dura lição aprendida (“If you can’t leave, you get yourself taken – like a personal eclipse”) – como se nos quisesse dizer que no meio do isolamento e das experiências individuais nos vamos afastando dos outros, sem moralismo na constatação. Há também arrependimentos sobre o Passado (“Sometimes you have to decide / what is wrong and what could be right / But I was too “kind” / I was on every side”) e há também “I Mined”, canção dura, que começa com Tamara cantando “It started small / a simple thought / That there was something wrong”, para mais tarde atirar “My slow heart wanted only what was endless / – to be helpless”.
E há, mais que tudo isto, uma canção ímpar, que poderia valer por um disco inteiro se colocada em loop por tempo suficiente: “Loyalty”, canção-título, é daqueles temas para todas as horas: triste de tão bonita que é, ou vice-versa (e quem disse que são coisas incompatíveis não percebe nada de arte, embora saiba, possivelmente, mais qualquer coisa da vida), impossível de não atingir quem a ouve, de fazer o ouvinte ouvir e voltar a ouvir, e adorar o disco mas ficar sempre preso na canção. Porque falamos de música torna-se impossível não referir a entoação dos versos “And I stood, so surprised / Trying to hold on, to my pride / So close, I could hear your low sigh”, a voz que se sabe já fazer esperar para regressar, de uma forma frágil e assumida, com os versos “There’s a loneliness / – I don’t loose sight of it. / Like a high distant satellite / one side in shadow, one side in light” para nos cantar depois, destruindo quaisquer ilusões que ainda ousassem restar sobre o Passado: “Drift of sentiment and memory / That I could not have / I could not keep / no it never did belong to me / it was only ever / another thing I would carry. Still it held me / loyalty to a feeling, to some glimpse / of a love that was only ever / a kind of distance”. A lealdade, portanto, posta ao serviço das ilusões.
É um disco feito de obsessão com o Passado, de relações falhadas e amizade singulares, de diálogos que servem de resolução estética para momentos de outros dias, de memórias que se vão construindo à luz dos olhos que se tem no Presente, de papagaios de papel que parecem andar soltos ao sabor do vento mas são sempre conduzidos a algum lado. É um disco atormentado no seu interior, que começa a desistir de resolver o que, pela indefinição, está já finalizado e em que se pode apenas revolver sem reverter. É um soçobrar elegante, desapiedado, quase distanciado de si mesmo – e se afinal Tamara diz que não gosta de personagens, não há como não elogiar o “eu” que aqui (re)cria, com seriedade, subtileza e uma coerência admirável. Mas tudo isto é dizer pouco, porque a música é música, e é feita para ser ouvida: o resto serve apenas de complemento, e se formos optimistas de optimização: porque há dois discos em Loyalty, o disco folk descarnado, absolutamente preciso e bem tocado se ouvido ao longe, e a obra-prima viva que foi criada por esta musa canadiana, candidata a um dos melhores discos dos últimos anos: num tempo de tanta música bem feita, e de tanta música preguiçosa, Loyalty pertence a um grupo restrito, clássico no bom sentido.