Por onde andará Ingmar Bergman? Numa sala de cinema, perdido nas estrias de um disco, à conversa com Hitchcock ou tentando fugir do labirinto cinematográfico da sua própria imaginação? Para desvendar todos esses mistérios, nada melhor do que convocar o poder sedutor dos Sparks!
Os Sparks, como bem sabemos, é a banda dos irmãos Mael (Ron e Russell), que há muito andam nessas boas vidas de gravar álbuns e fazer música para contentamento de milhões de pessoas no mundo. O som é o seu caminho desde os anos setenta e ainda por cá andam, assíduos em estúdios e em concertos. Para mais, continuam a ser relevantes, até porque nunca se sabe o que poderão engendrar a seguir, e isso é sempre coisa de valor. Por outro lado, como também estamos cientes, Ingmar Bergman foi um prolífico realizador e diretor de cinema, assim como escritor. Deixou-nos em 2007, tendo criado um vasto número de obras de sucesso de crítica, mas nem tanto de público, reduzido apenas aos que entendem a sétima arte bem mais como intelectualidade do que como um meio e um espaço onde ver imagens e comer pipocas se conjugam. No entanto, o que poucos esperavam era que, em 2009, um inusitado musical visse a luz do dia juntando os irmãos americanos e o bom sueco dos Morangos Silvestres. Mas assim foi, e o resultado, ao fim de mais de uma década, continua delicioso, um autêntico prazer para os ouvidos e para a nossa imaginação.
A narrativa presente em The Seduction of Ingmar Bergman é intrincada, onírica e sedutora, pois então. A mistura de vozes e das linguagens faladas / cantadas contribui para esse fim, que mais não é o de nos seduzir, fazendo com que acompanhemos a par e passo as aventuras e desventuras do realizador sueco em solo hollywoodesco, assim como muitos outros factos de interesse em que se misturam diversos estilos de música, desde o pop ao rock, havendo também, para que o banquete sonoro seja farto e múltiplo, registos operáticos e de vaudeville, por exemplo. O que aparenta, pela descrição feita, ser festivo, nem sempre assim é, pelo que certos momentos de inquietação e de suspense fazem, e bem, parte do enredo musicado. Estamos, se para isso nos abstrairmos um pouco da realidade, imersos num curioso filme, numa película falada e cantada, com músicos e atores que transitam perante os nossos ouvidos, estimulando a nossa mais íntima imaginação.
Ora vamos lá ao enredo, que é como quem diz ao disco. Após o sucesso do seu filme Sorrisos de Uma Noite de Verão, obra premiada no Festival de Cannes de 1956, Bergman é um autor ainda mais na ribalta e em vias da consagração absoluta e mundial. Depois de regressar ao seu país natal, algo de impensável acontece: após sair de uma sala de cinema onde havia visto um filme de Hollywood, Ingmar Bergman, como que por magia, vê-se transposto para os Estados Unidos. Há um motorista que espera por ele com o ensejo de o levar até à presença dos homens que mandam no cinema da terra do Tio Sam. Hollywood quer, na verdade, seduzir o cineasta sueco, propondo-lhe que realize uma longa metragem ao estilo americano. Colocadas as coisas em pratos limpos, surge o dilema da aceitação (ou não) da proposta feita, sendo que nós, ouvintes, vamos habitando a cabeça de Bergman, pano de fundo para uma interessante metáfora entre o mundo europeu e o norte americano, entre duas realidades que dificilmente podem conjugar-se, artisticamente falando, mas não só. Bergman vê-se perseguido por fotógrafos, jornalistas, sentindo-se cada vez mais incapaz de lidar com todo o cenário que lhe é montado e oferecido, embora não rejeitando de forma perentória e imediata a proposta recebida. A meio de tão onírica viagem, cruza-se com vários cineastas europeus de prestígio que fizeram carreira em Hollywood, como Billy Wilder, Fritz Lang, F. W. Murnau, Jacques Tourneur, Josef von Sternberg e Alfred Hitchcock. Todos parecem satisfeitos com a experiência, facto que coloca ainda mais dúvidas em Bergman.
No entanto, o enredo à volta do autor de A Flauta Mágica vai ganhando contornos cada vez mais intrincados, lembrando, eventualmente, alguns dos sinuosos romances de Kafka, de tão labirínticos e sinuosos. Bergman está decidido a fugir, a deixar aquele lugar, embora não saiba como fazê-lo. É perseguido por várias pessoas, a própria polícia anda atrás dele. Está criado, como se vê, um cenário hollywoodesco em que o realizador sueco é personagem principal, embora sem jeito e sem vontade em ser estrela do pobre e precário filme onde se meteu. Esse não é o seu cinema, digamos assim. Bergman está perdido e busca, em desespero, regressar ao seu tranquilo espaço europeu, o que acaba por conseguir com a surpreendente ajuda da idiossincrática deusa Greta Garbo.
Quem melhor dos que os Sparks para unir todas estas pontas em forma de música? Ninguém, provavelmente. Por isso foram convidados por uma importante estação de rádio sueca para levarem a bom porto essa tremenda empreitada. O álbum The Seduction of Ingmar Bergman é, por assim dizer, uma peça única, sem intervalos ou interrupções. Deve ser ouvido de uma ponta a outra, para que o prazer da escuta seja mais óbvio e imediato. Tornou-se, desde que foi lançado, um objeto difícil de encontrar, e por isso teve reedição recente, tanto em cd como em vinil. Não será, à partida, o disco mais conhecido ou mais apreciado da extensa discografia dos Sparks, mas acreditem que é um dos mais curiosos objetos sonoros que os manos Mael alguma vez produziram. Muito interessante e muito bom! Ouça-o e veja-o e perceberá que talvez tenhamos razão no que afirmamos.