Logo que o Maio de 68 aconteceu, o ícone da nouvelle vague Jean-Luc Godard entrou na sua fase abertamente política, pondo a sua câmara de filmar ao serviço da “subversão, ruína e destruição de todos os valores civilizados”. Não estranhamos por isso que os filmes deste período (entre ’68 e ’72) sejam uma insólita mistura de comprometimento ideológico com o mais desbragado experimentalismo. One Plus One/Sympathy For The Devil não é excepção.
Godard sempre fora fascinado pela cultura pop, colocando no mesmo plano de interesses o maoísmo e a Coca-Cola. No que diz respeito à música, a cultura de massas daquele tempo era-lhe apelativa também de outro ponto de vista: o rock’n’roll estava ligado a uma contracultura jovem e contestatária (hippies e afins), terreno fértil para pôr em marcha os seus propósitos revolucionários. O seu pouco convencional marxismo ditava-lhe um insólito conselho: na luta de classes as estrelas de rock anti-establishment eram uma força a ter em conta.
Jean-Luc começa por convidar os Beatles mas estes, desconfiados, recusam. Os Stones são a sua segunda escolha. Deus escreve direito por linhas tortas: a banda que tornou sexy a malícia e a desordem serve melhor as intenções subversivas do cineasta francês. Se há banda que encarna na perfeição a irreverência do espírito “sex, drugs and rock’n’roll” são, sem dúvida, os Rolling Stones.
Godard faz então as malas, viaja para Londres e assenta arraiais no estúdio onde os Stones ensaiam a icónica “Sympathy For the Devil”. Esta canção foi inspirada na leitura do romance A Margarida e o Mestre de Mikhail Bulgakov (livro oferecido a Jagger por Marianne Faithfull). O narrador é o próprio Lucifer, que nos apresenta na primeira pessoa uma breve história do mal, desde a crucificação de Cristo até ao assassinato dos Kennedys (tempos conturbados aqueles: o assassinato de Robert Kennedy a 5 de Junho de 68 obrigou Jagger a alterar a line “who shot Kennedy” para “who shot the Kennedies”). Nesta história do mal, Lucifer apresenta-se mais como um cordial espectador do que propriamente como um pérfido actor. A intenção de Jagger é, assim, sugerir que o mal é uma constante histórica que provém da própria natureza humana e não de qualquer entidade trascendente. Mais uma vez, os Stones revelavam-se como o lado negro dos Beatles: o pessimismo antropológico desta canção não poderia estar mais distante do ingénuo optimismo de “All You Need Is Love”. Um ano depois, o malogrado Altamont dará, infelizmente, razão aos Stones.
One Plus One alterna planos dos ensaios com planos de conteúdo político sem qualquer relação directa com os Stones; e é desta dualidade que provém o desequilíbrio do filme.
Se os planos dos ensaios são muito interessantes, captando a dinâmica interna dos Stones num período importante da sua história, os planos políticos são pretensiosos, incompreensíveis e, mais grave ainda, terrivelmente enfadonhos: black panthers passando armas num ferro-velho enquanto lêem propaganda revolucionária; clientes de uma livraria pornográfica adquirindo propaganda nazi enquanto dão chapadas a dois reféns maoístas; jornalistas de câmara na mão inquirindo politicamente uma mulher chamada democracia; e demais parvoíces. A reflexão que Godard certamente queria propor – deixas muito vagas sobre as relações existentes entre arte, exploração, sexo, poder e revolução – por e simplesmente não funciona. Keith Richards adianta na sua autobiografia uma explicação para o sucedido: “Godard tomou algumas substâncias que não devia e a que não estava habituado. Tomou ácido a mais e embarcou numa onda de desbragamento pseudo-ideológico”.
Mas não se deite o bebé fora. As filmagens dos ensaios dos Stones são, de facto, preciosas. Era o tempo do do cinéma vérité e a câmara de Godard estava agora determinada em captar um pouco de verdade. Nada é programado, nada é ensaiado; e assim a dinâmica interna dos Stones no tumultuoso ano de ’68 vai sendo revelada.
É confrangedor o estado absolutamente vegetal em que se encontra Brian Jones. Do princípio ao fim, o multi-instrumentista que fundou os Rolling Stones arrasta-se como um zombie pelo estúdio, alheado de tudo e de todos, tocando uma guitarra acústica que ninguém ouve, cada vez mais encapsulado na sua bolha de álcool, downers e depressão. O facto de Jagger e Richards o terem excluído da liderança dos Stones – e do último lhe ter açambarcado a bela Anita Pallenberg – deu o empurrão que faltava ao seu já irreversível desmoronamento emocional.
Em contraste absoluto com a presença espectral de Jones, vemos Jagger a comandar, enérgico, as hostes na linha da frente, e Richards a comandá-las na retaguarda, uma amostra do que seria o modus operandi dos Stones a partir daí. Jagger chega mesmo ao ponto de ralhar com Charlie Watts, por causa de um ritmo mais apagado: “Por amor de Deus, Charlie, põe vida nisso!”
O filme revela igualmente ao olhar público as diversas etapas de evolução na abordagem a “Sympathy For The Devil”. A canção começa lenta e folkie, com Jagger a cantá-la com um entoação arrastada à Dylan, e com Richards, Jones e o próprio Jagger dando-lhe um travo psicadélico na guitarra acústica. Sabemos – a partir da autobiografia de Richards – que o produtor musical Jimmy Miller perguntou, desiludido: “mas onde raio está o groove?” Keith Richards encolhe os ombros: de facto, não o havia ainda.
Noite após noite, os Stones vão experimentando com o ritmo e o feeling da canção até chegarem por fim à abordagem que conhecemos: rápida e percussiva, quase tribal, piscando o olho ao samba na sua frenética riqueza rítmica. Chegara, por fim, o groove.
Através da câmara intrometida de Godard, percebemos que a arte não é o processo divino de iluminação súbita que frequentemente idealizamos. Pelo contrário, vemos diante dos nossos olhos um processo humano e tangível, onde o progresso é feito por ensaio e erro. A dessacralização da arte daí decorrente é, na minha opinião, o grande contributo que Godard nos dá com este filme. Afinal, os artistas tacteiam no escuro à procura da pura beleza mas é precisamente essa fragilidade que faz da arte algo ainda mais comovente.
Em Novembro de 68, o filme estreia-se no London Film Festival (uma semana antes do lançamento de Beggars Banquet). Godard constata indignado que o seu filme sofreu alterações da produção, para ficar mais apelativo comercialmente. Não só o título foi alterado de One Plus One para Sympathy For The Devil, como no final é apresentada uma versão sem cortes da canção. Godard levanta-se furioso, dá um soco no produtor Iain Quarrier e instiga os espectadores para pedirem o seu dinheiro de volta e para verem lá fora a versão original.
A posteridade veio, contudo, dar razão ao produtor. Através do olhar distanciado que só o tempo nos permite, não temos hoje dúvida de que a relevância de One Plus One se esgota na sua condição de documento ímpar da história dos Stones. Com as suas pequenas alterações, Iain Quarrier mais não fez do que assinalar essa inconveniente verdade.