Os Doors são uma banda que dispensa apresentações. Sendo considerada uma das melhores e mais influentes bandas de sempre, o registo que vos trago neste artigo é o último de originais, lançado pelos membros que então restavam da banda: Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore. Porém, sete anos antes deste lançamento, tinha-se apagado a luz do mais importante elemento desta mítica banda, tanto pelo seu trabalho como letrista, como pela sua personalidade e personagem em palco. Falo, é claro, de Jim Morrison, que então se juntara a Janis Joplin e Jimi Hendrix na constelação de artistas falecidos aos 27 anos de idade.
O que encontramos em An American Prayer é uma colecção de 23 poemas, que mais parecem contar uma grande história. Esta épica obra de spoken word foi escrita, na totalidade, por Morrison. No entanto, a sua morte precoce nunca permitiu que se soubesse ao certo o destino daquelas sessões, decorridas entre 1969 e 1970, em que Jim declamou e gravou os poemas que se ouvem ao longo do álbum/conto. Por causa disso, surgiram algumas divergências sobre o que fazer com estas gravações.
Apesar do sucesso de vendas, muitos foram os que se puseram contra o que a banda fez com essas sessões de poesia, incluindo o produtor de longa-data da banda, Paul Rothchild, que intitulou o álbum como uma “violação do Jim Morrison”. De notar que o autor das gravações chegou a falar com o compositor Lalo Schifrin no sentido deste musicar alguns destes poemas.
Passando à análise propriamente dita, este não é, aviso já, um álbum típico dos Doors. Alguns poderão dizer “é óbvio que não, é um álbum de spoken word”. Mas não é neste sentido que vos digo isto. Neste álbum, para além de nele ouvir-nos o já habitual Jim Morrison-possuído-por-um-demónio-qualquer, pelo facto das suas palavras serem declamadas e não cantadas, as mesmas ganham um novo sentido, uma nova imagética.
Tipicamente “Morrisonianas”, embora bastante mais negras do que era então costume, as letras, constituídas por uma diversa rede de elementos, criam as mais diversas sensações, desde a melancolia à alegria (causada pelo seu fantástico sentido de humor). Esta mestria na arte da escrita e da palavra fazem com que nos sintamos absolutamente impotentes, como se nos tratássemos de recém-nascidos nas mãos do “pai” Jim, completamente hipnotizados pela sua voz e compelidos a (tentar) imaginar e sentir o mesmo que ele.
A maneira como se encadeiam as imagens que a poesia do Lizard King nos cria na cabeça é impressionantemente assustadora. No bom sentido, é claro. Tomemos como exemplo a faixa “Dawn’s Highway”. No seu início somos informados do estado da situação: o poeta (em criança) a viajar no deserto, durante a madrugada, com a sua família (pai, mãe, avô e avó). Logo depois, quase imperceptivelmente, Jim introduz a descrição serena de uma imagem bastante macabra: uma carrinha despistada a encher a auto-estrada de índios mortos, cobertos de sangue. “That was the first time I tasted fear”, confessa o poeta. Diz ainda que duas ou três almas daqueles índios estariam ainda por ali e então entraram dentro de si (talvez sejam os tais “demónios”).
Só aqui, depois de estarmos agarrados a esta pequena narrativa, é que percebemos que a mesma não é senão uma explicação para aquele famoso verso da música “Peace Frog”: “Indians scattered on Dawn’s Highway bleeding, ghosts crowd the young child’s fragile eggshell mind”. Até que ponto esta história é verídica, só um o saberá. Ou saberia, se cá estivesse.
A parte musical de An American Prayer encaixa-se bastante bem nos poemas, com a banda a recuperar a sua sonoridade mais psicadélica, mas também a incorporar elementos do rock mais clássico e do jazz, produzindo, desta forma, um acompanhamento e um efeito bastante positivos na poesia de Jim, enfatizando os sentimentos transmitidos nas suas palavras.
An American Prayer, para os menos ávidos conhecedores e interessados na banda, não será essencial. No entanto, para aqueles que quiserem descobrir mais para além do comum nos Doors (sobretudo na poesia de Jim Morrison), a não audição deste fantástico álbum é uma enorme falha, devendo ser colmatada o mais rapidamente possível.