Em quatro anos muito muda: passa o secundário e parece que tudo começou há uma vida atrás. Para Zachary Cole Smith, em quatro anos passaram várias vidas.
Depois de tocar em bandas como Darwin Deez ou Beach Fossils, Smith decidiu formar uma banda, então chamada Dive. Em 2011, juntaram-se à editora Captured Tracks e, com três singles na bagagem, a banda cresceu no circuito nova-iorquino, nomeadamente na cena de Brooklyn, atuando por diversas ocasiões mais que uma vez por noite.
Após mudança da grafia no nome (já havia uma banda alemã chamada Dive), voltaram à carga, desta vez sob o nome DIIV, trazendo consigo o álbum de estreia Oshin (pronunciado como “ocean”). As linhas de guitarra hipnóticas, sonhadoras e a tímida voz enterradas em reverb ecoavam por todo o lado naqueles 40 minutos de magia, por cima de um baixo sempre balanceado e uma bateria a transportar tudo com a batida motorika. Era assim que Oshin se fazia ouvir no verão de 2012; com ele a banda foi crescendo nos Estados Unidos e, cada vez mais, para fora deles.
Tudo corria bem, até ao fatídico dia de setembro em que Smith e Sky Ferreira, a sua namorada, foram apanhados com heroína e ecstasy, que mais tarde se veio a confirmar ser tudo de Cole. Como não podia deixar de ser, o casal passou a ser constantemente comparado a Kurt e Courtney. Um ano depois, o baixista Devin Ruben Perez era acusado de comentários machistas e homofóbicos. Tudo isto criou uma imagem bastante controversa e negativa da banda – o seu nome passou a ser sinónimo de “drogados losers e racistas que também odeiam mulheres e gays”.
Impunha-se uma lavagem urgente do nome, era necessário renascer. Era preciso pedir desculpa por toda a porcaria. Foi de e para tudo isto que nasceu o duplo LP Is the Is Are. Durante uma hora e cinco minutos, Cole leva-nos aos cantos mais escuros destes anos, tornando o álbum bastante negro, mas não sem nos oferecer, pontualmente, breves passagens pelo refúgio que encontrou no seu amor com Sky Ferreira.
A matriz essencial da música é a mesma: uma batida forte e pulsante, muito inspirada na motorika criada por Klaus Dinger, e um baixo que está lá sobretudo para guiar a loucura das guitarras cristalinas que, num rodopio de reverberações incessante, mostram uma sensibilidade melódica encontrada poucas vezes na história da música pop dita “alternativa” – lembram, sobretudo, Johnny Marr, Robert Smith ou Elliott Smith. A influência deste último é, contudo, mais audível nas letras brutalmente honestas e, segundo Cole, na abordagem à produção dos vocais.
Apesar da base ser semelhante, a evolução no som aconteceu e é possível ouvi-la logo no primeiro decibel – o amplificador a estalar em “Out of Mind”. O caráter orgânico e até cru que vai polvilhando o álbum é uma das coisas que Bad Moon Rising dos Sonic Youth ajudou a trazer para Is the Is Are. Este abrir do ambiente hermético em que Oshin se fechava, o “não querer limar” todos os detalhes foi algo que o criador-maior da banda procurou, por querer mostrar algo caseiro, humano e imperfeito, na esperança de que esta sinceridade permita que, quem o ouça, sinta empatia para com aquilo que tem a dizer e mostrar. Há nesta música de abertura outra característica que salta ao ouvido de quem já conhecia estes rapazes de outras bandas – a voz: ouve-se e percebe-se o que Cole está cantar! O desprover a voz de toda a reverberação que a protegia em Oshin é outro grande salto para este novo álbum, em que as letras tomam um lugar central nas canções.
Em “Under the Sun” temos um dos poucos momentos de leveza do álbum, uma canção de amor, em que o sol brilha a cada nota que sai das guitarras, só para depois ser coberto de nuvens pela sombria “Bent (Roi’s Song)”. Nela ouvimos algo que nos DIIV não era assim tão comum e existe muito neste álbum – distorção. As ondas de feedback que se fazem ouvir e quase afogam a restante melodia transformam este relato da vida subjugada ao vício da heroína numa experiência bastante emotiva e desconcertante – o verso “I lost you when you said one hit couldn’t hurt a bit” fica na cabeça e pesa.
Na mesma temática, mas com uma roupagem dramaticamente diferente, segue-se o primeiro single de Is the Is Are, “Dopamine”. Vestida de um riff alegre e sonhador, esta faixa relata a experiência de Cole com a cocaína e a heroína (“Fixing now to mix the white and brown”, “Buried deep in a heroin sleep”), dando a sua história como exemplo de algo a evitar. Na bridge, o cantor interpela-nos por várias vezes com toda a honestidade “Would you give your 81st year / for a glimpse of heaven now and here?”, fazendo o número de anos decrescer assustadoramente rápido a cada repetição.
Depois chega um dos momentos mais altos (e antecipados) do álbum – “Blue Boredom”, a colaboração com Sky Ferreira. Nesta faixa, a influência do segundo registo dos Sonic Youth volta a ser preponderante; o feedback surge em primeiro plano, a envolver uma guitarra que cospe três notas numa repetição hipnótica, enquanto o baixo vai criando a melodia, com uma bateria pulsante a suportar tudo. Por cima de tudo isto, a voz sensual de Sky (que aqui se assemelha muito, mas muito mesmo a Kim Gordon), ora sussurrando ora cantando, vai deixando no ar uma letra de influência beat, que encaixa na ambiência do instrumental perfeitamente.
Em “Valentine” uma batida enérgica, quase maníaca, um teclado (!) em loop e um baixo preciso encontram uma guitarra errónea que acaba por se transfigurar num riff angelical, que ecoa à medida que vai descendo dos céus. Depois, na sombria “Yr Not Far”, linhas de guitarra vão-se acumulando e construindo umas sobre as outras, desembocando num mantra sombrio e desolador que Cole vai proferindo, numa bela harmonização com as segundas vozes – “On your own, you’re not far”. Já em “Take Your Time” temos um dos momentos mais melódicos do álbum.
A faixa-título “Is the Is Are” abre o segundo LP deste álbum duplo à velocidade da luz, com a potência da motorika a levar-nos diretamente para a estratosfera. A influência dos alemães Neu!, nomeadamente da canção “Hallogallo” é por demais evidente nesta música, não só na secção rítmica, mas também nas guitarras que viajam em reverso no fundo da música. Smith atribui ainda à composição dos germânicos a inspiração no próprio processo de criação de “Is the Is Are”. É uma faixa que, na sua forma, é muito incomum na banda – não recorre a uma linha de guitarra ou de baixo para sustentar a melodia, mas antes à voz. A letra fala, segundo Cole, sobre os mind sets paradoxais que marcam o vício e a reabilitação.
Após uma viagem pelo céu, é tempo de descer muito fundo, aos abismos mais negros e tortuosos. “Mire (Grant’s Song)” é outro dos melhores momentos deste álbum, embora seja indubitavelmente o mais pesado e difícil. Feedback em quantidades não recomendáveis, guitarras distorcidas e atormentadas, uma bateria que a certa altura perde a cabeça e começa a disparar para todos os lados, uma voz que vai de sussurrar uma epifania (“I was blind but now I see”) a gritar em dor e desespero “Get away!” – tudo isto em cinco minutos. É uma faixa muito intensa, em que Bad Moon Rising volta a ser uma inspiração importantíssima. Sem sair deste lado negro, num registo menos abrasivo, temos a atribulada “Incarnate Devil”.
Olhando para o comprimento do álbum e para a curtíssima “(Fuck)”, poder-se-ia cair no erro de achar que este é um álbum que tem músicas a encher, só para chegar ao estatuto de álbum duplo; mas não é esse o caso. Mesmo os 17 segundos deste interlúdio servem um propósito: “(Fuck)” limpa o ambiente pesado e sujo que as faixas anteriores tinham deixado e abre espaço para o momento mais belo do álbum florescer. Das sombras surgem, assim, “Healthy Moon” e “Loose Ends”. A primeira, agridoce e melancólica, mostra uma das melodias mais bonitas que Cole criou até à data, com uma linha de bateria a lembrar as de Bryan Devendorf e um desfecho inesperado, onde um piano surge sozinho e frágil entre guitarras. A segunda, é feita de guitarras envoltas em texturas psicadélicas, límpidas e cristalinas, que invocam o ambiente sonhador de Oshin.
Após o segundo interlúdio “(Napa)”, em que as palavras “Your eyes” são repetidas incessantemente sobre uma batida forte e bruta, somos lançados para o ambiente acinzentado e sombrio que marca o final do álbum. “Dust”, que já se conhecia de uma demo de 2013, surge, na sua versão final, mais distorcida, em que a voz de Cole vai proferindo uma presságio sombrio, e em que tudo culmina no solo catártico, em que todos os demónios são expurgados.
“Waste of Breath” acaba por ser o final perfeito para um álbum cujo objetivo maior é a redenção – a bateria marcada, as guitarras a emitir frágeis harmónicos e a voz a afirmar num mantra “It’s no good, it’d be a waste of breath” ajudam a envolver o término de Is the Is Are num nevoeiro misterioso (que lembra os The Cure da fase mais gótica, sobretudo de Faith), que deixa nas mãos de quem ouve o segundo registo de DIIV a decisão de voltar, ou não, a centrar as conversas sobre a banda na música, deixando para trás os julgamentos feitos rápidos de mais e sem conhecimento de causa, perdoando-lhe as falhas cometidas.
Is the Is Are é um álbum em que somos transportados às voltas pela montanha-russa da vida de Zachary Cole Smith nos últimos anos. Com este registo, o músico bate o pé e reclama o seu merecido lugar no mundo da música. É um álbum que é humano, imperfeito e sincero; ele está vivo e a dizer-nos coisas. Nele, a banda não se limitou ao conforto do som que encontrara em Oshin: procurou novas praias e recriou-se. Em última análise, a descrição mais perfeita que dele se pode fazer é dada pelo seu criador:
“It is a happy record, a sad record, a happysad, sadhappy, mad, glad, quiet, mad, dark, glad, poppy, fast, slow, heavy, fast, peaceful, angry, chaotic, beautiful, lost/found, ugly, dry, wet, fuck, fast, dead, heartbroken, in love, loud, quiet, loud, loudquiet, quietloud, happy, mad, quiet, fuck, and loud record.”
Tudo certo, portanto.