Em 1999, o que era eu? Mal conseguia andar, a Cerelac era o pão meu de cada dia, os desenhos animados da Disney a minha dose diária de remédios. Tal como eu, muitas outras crianças davam os seus primeiros passos num mundo de maravilhas, só seu. Que se lixe o Wittgenstein: aos 3 anos, espantava-me a existência do mundo. A realidade que eu conhecia era precisamente não conhecer nada – por isso admirava-me a existência de coisas.
Não só eu e os meus amigos desse tempo bom íamos conhecendo e criando mundos. Em Baltimore, essa terra mágica da costa este dos Estados Unidos da América, dois garotos forjavam um verdadeiro portal de escape para um mundo que só os contos de fadas nos poderiam fazer imaginar. Mas, para a criação de tal portal, David Portner e Noah Lennox deixaram de lado os ferros maciços, as bigornas e os metais ardentes. Em vez disso, um Roland SH-2, um Juno 60, guitarras acústicas, loops de feedback e uma bateria foram usados para esculpir ao pormenor essa porta de acesso.
Chegada a hora de abrir o portal, o disco começa a rodar e ouvem-se as primeiras notas. Quase um motor de foguetão que nos chuta para lá da estratosfera, os inacreditáveis e melancólicos loops de feedback (magia feita assim) chamam por todos os espíritos que nos dão acesso ao que está para lá do portal. Aproximamo-nos dos arbustos, tocamos-lhes, as folhas afastam-se e revelam um mundo que tanto tem de fantástico como de tenebroso. Os espíritos dançam, apáticos, contam as saudades de ser criança. Na primeira música oficial da sua carreira, os Animal Collective – na altura, ainda Avey Tare and Panda Bear – cantam aquilo que, a partir daí, sempre cantaram. Os temas da infância, da pureza, da amizade – entre outros relacionados – foram baluartes constantes do conjunto americano. Um sonho hippie desprovido de ingenuidade. A infância acabou, é certo, mas deve manter-se aquilo que nela se aprendeu: a amizade, o companheirismo, o espírito de aventura. Num sorriso amigo uma utopia.
“April and the Phantom” chega-nos, então, mais orgânica que a antecessora. A percussão de Panda Bear destaca-se em especial nesta faixa. Inspirada em Forever Changes (1967), dos Love, e Ocean Rain (1984), dos Echo and the Bunnymen, a bateria faz a cama para um trémulo teclado, uma guitarra irrequieta, um poema que tem tanto de belo como de bizarro – como, aliás, todo o disco. Há ainda uma voz instável que nos canta e grita, em certos pontos a lembrar-nos hoje a forma de cantar de Connan Mockasin. Segue-se o noise triunfal de “Untitled”, o piano sereno de “Penny Dreadfuls” e as borboletas de “Chocolate Girl”. A história da rapariga dos chocolates é um dos temas mais sensíveis e belos deste longa-duração, desde os efervescentes teclados ao delicado dedilhar de guitarra, do baixo saltitante à voz fraterna que nos canta mais uma das densas e difíceis letras do álbum.
Importa dar a Spirit They’re Gone… o tempo merecido. Para se escutar, para se estranhar, para se entranhar, para se admirar, para se escapar. Daí que faça mais sentido ouvir o resto do disco, para tirar cada um as suas elações. Importa só destacar a faixa final, um épico que excede os doze minutos, uma obra-prima que vale por si. “Alvin Row” é uma ode que é também o culminar de uma pedra basilar. De um álbum mais marcante por tudo o que se seguiu do que pelas as escutas de que foi alvo. Gravado em 1999 e lançado no ano 2000, Spirit They’re Gone, Spirit They’ve Vanished foi o ponto de partida para uma das bandas mais inventivas da música moderna. No virar do século, nasce uma banda que nunca se conformou, que sempre inovou e nunca se repetiu. Um marco do psicadelismo, da freak folk, do experimentalismo aliado ao lirismo, do que lhe quiserem chamar. Um capítulo de inovação que deu lugar a tantos outros que lhe seguiram – não só feitos pela mesma banda mas por todos os artistas que nela se inspiraram. Um disco difícil, um portento, mas uma parte da carreira dos Animal Collective demasiado ignorada. Um autêntico mundo criado do nada, um mundo de fadas feitas de circuitos, um mundo maravilhoso de melancolia. Ouça-se Spirit They’re Gone… e conte-se os contos que este nos traz, sempre acrescentando um ponto. “My singing voice is gone”, ouve-se no final. Não deixemos que os espíritos se esfumem.