O estatuto de lenda marca a vida de David Gilmour há décadas. Depois de um percurso glorioso (mas também tumultuoso) com os Pink Floyd, banda responsável por alguns dos momentos mais revolucionários da História do rock psicadélico e progressivo, o guitarrista e vocalista definiu um caminho próprio a solo. E, uma vez mais, não se desvia desse trilho, num álbum que é também uma espécie de homenagem a Richard Wright, o marcante teclista dos Floyd, desaparecido em 2008.
É só o quinto álbum de estúdio em nome próprio do cantor/compositor/produtor: além de Luck and Strange e Rattle That Lock (2015) há David Gilmour (1978), About Face (1984) e On An Island (2006). Por muito que o tempo passe, as memórias mais marcantes tendem a perdurar, sobretudo quando exercem um peso específico tão impressionante como sucede com a vida de David Gilmour e a sua influência numa banda da dimensão dos Pink Floyd (mesmo que Gilmour não estivesse na formação inicial, em 1965, apenas se juntando dois anos mais tarde, quando o estado mental de Syd Barrett já não lhe permitia manter-se no grupo).
Aos 78 anos, se o envelhecimento e a morte ganharam relevância como temas, também no quadro da pandemia, como o próprio reconheceu à Rolling Stone, esse passado fulgurante e turbulento, bem vincado com a saída conflituosa do líder criativo, Roger Waters, sobressai a cada novo álbum a solo de um dos mais famosos guitarristas de sempre. Nove anos depois do anterior, Luck and Strange é também uma homenagem a Richard Wright, teclista dos Floyd que morreu em 2008, vítima de cancro num pulmão.
Seria sempre inevitável a recordação e, neste caso, é-o ainda mais porque a própria canção que dá nome ao álbum vem de uma das últimas vezes em que tocaram juntos: 2007, na chamada “original barn jam”, quando Gilmour, Wright e outros músicos se reuniram em casa do guitarrista. Ao todo, quase 14 minutos de música num ambiente intimista que fecha o álbum (ao vídeo do tema-título têm acesso os compradores da chamada “edição de luxo”).
Se a tudo isto juntarmos um ponto de partida muito familiar – o álbum começou a ser definido em plena pandemia, com Gilmour e a família (a escritora Polly Samson, responsável pelas letras; a filha Romany, que canta e toca harpa, o filho Gabriel, e Charlie, filho adotivo, com a mulher, Janina, e a sua pequena filha, Olinka) retidos em casa, em sessões de 2020 que seriam para promover o livro de Polly, “A Theatre for Dreamers”, e que podem ser vistas no Youtube sob o título “Von Trapped Series” –, não há geografias, sentimentais ou no plano musical, que sejam de aventura no desconhecido.
Salienta-se, no entanto, a importante presença de Charlie Andrew, produtor de nomes como James, Alt-J, Marika Hackman ou Bloc Party, e que, no contexto deste disco, funciona como ténue tentativa de afastamento face ao passado. Mas não impede uma das principais imagens de marca de Gilmour: os solos de guitarra, omnipresentes ao longo da carreira e também deste trabalho discográfico. Os baixos de Guy Pratt e Tom Herbert; baterias a cargo de Adam Betts, Steve Gadd e Steve DeStanislao; Rob Gentry e Roger Eno nas teclas: eis parte das participações que se juntam neste disco.
O instrumental “Black Cat” é a abertura, num minuto e meio de reminiscências floydescas; “Luck and Strange” é uma canção forte, lembrando a geração do pós-guerra e a sua convicção de que não viriam mais conflitos; “The Piper’s Call” é uma balada em que Gilmour reparte o virtuosismo por vários instrumentos de cordas; Romany faz da voz um instrumento hipnotizante na versão de “Between Two Points”, tema original dos Montgolfier Brothers, e dialoga com o pai mais adiante em “Sings”; antes há “A Single Spark” e “Vita Brevis”, instrumental de slide guitar e harpa com 42 segundos; “Dark and Velvet Nights” fica no ouvido pelo ritmo; “Scattered” teve participações de Polly e Charlie; “Yes, I Have Ghosts” podia ser a legenda desta parte da vida do músico; o fecho traz os tais 14 minutos de “Luck and Strange” com Wright nas teclas.
Endless River, o último álbum dos Pink Floyd, tem 10 anos. A anterior digressão do músico remonta a 2016. Roma, com seis concertos esgotados, foi o primeiro ponto da que está em curso. A 9 de outubro, no Royal Albert Hall, em Londres, prossegue a viagem que, além dos seis shows londrinos, inclui ainda cinco presenças em Los Angeles e outras tantas no Madison Square Garden, em Nova Iorque. O passado presente na música e nos banhos de multidão para o autor de hinos como “Wish You Were Here” ou “Shine On You Crazy Diamond”.