Em 1988, Nuno Canavarro, músico e compositor lisboeta, lançou o seu único registo a solo até à data, Plux Quba – Música para 70 serpentes: um disco demasiado esdrúxulo para um Portugal que ainda vivia no antigamente, mas que foi pacientemente construindo a sua audiência que ainda hoje por ele se apaixona.
Não deixa de ser curioso fazer o apontamento de que o primeiro grande amor de Nuno Canavarro não foi a música, mas sim o desenho. Apesar de ter sido instruído no piano desde tenra idade, foi pelos rabiscos que orientou o início da vida adulta, o que o levou a abandonar a capital, onde havia nascido em 1962, rumo ao Porto, para concluir uma licenciatura em Arquitetura. No entanto, de regresso a Lisboa, viu-se desiludido com as perspectivas profissionais que a área lhe oferecia para exorcisar a sua intensa visão criativa, e logo regressou ao piano e à música.
Mas esta primeira paixão de Canavarro, cujo primeiro sentido a apurar-se foi a visão e não a escuta, reflete-se intensamente no seu único trabalho a solo até à data, o inusitado disco de eletro-acústica Plux Quba, lançado em 1988 através da editora Ama Romanta. Os trinta e oito minutos de simplicidade etérea pintam um quadro de visuais comoventes, e cada carícia do sintetizador transforma-se na trajetória de um pincel por uma tela em branco. Plux Quba é uma viagem intensamente prazerosa e melancólica por um mar de pequenos nadas, que o génio de Canavarro foi capaz de transformar em grandes tudos. No fundo, materializa na perfeição a verdadeira arte da música minimal – conseguir dizer tanto com tão pouco. Só é pena ter sido, na altura, lançado para ouvidos moucos, por onde e quando aconteceu.
Infeliz com a singular perspetiva de vida de arquiteto, Canavarro decidiu retomar o piano que deixara para trás, e, entre esta escolha e o lançamento de Plux Quba, em 1988, teve tempo para muita coisa: fundou os Street Kids, tocou fugazmente com os Delfins e ainda tirou outro curso, desta vez de Sonologia, na Universidade de Uchtrecht, no coração dos Países Baixos. Uma vez regressado à pátria, viu-se ansioso por converter em álbum todos os novos truques técnicos e criativos que aprendera num sofisticado estrangeiro. No entanto, esquecera-se, com certeza, de que o seu país era Portugal, uma nação que ainda lambia as feridas de uma asfixiante ditadura que acabara há menos de duas décadas, e que fora, em muitos aspetos, também ela cultural. Muito graças à ferocidade do Diretor do Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro, cuja influência se alastrou muito para além do final do seu mandato, que terminou no final da década de quarenta, a cultura portuguesa permaneceu oca e estéril durante grande parte do século XX, principalmente no que tocava ao contacto com as entusiasmantes novas vanguardas artísticas (e musicais) que brotavam como ervas daninhas de todos os cantos do mundo, principalmente o anglo-saxónico. Não seria possível ter contactado tão cedo com nomes que poderiam ter vindo a preparar os ouvintes portugueses para Plux Quba, como Reich ou Riley. Mas Canavarro insistiu.
João Peste, vocalista dos Pop Dell Arte, foi dos primeiros a prestar-lhe atenção, quando apanhou Canavarro a apresentar o seu mais recente projeto no instituto Franco-Português. Fascinado, ofereceu-lhe imediatamente o selo da sua editora, Ama Romanta, que já editara nomes como Cães Vadios e Anamar. Plux Quba acabou por ser lançado sob a sua tutela em agosto de 1988. É um disco curto, na qual a maior parte dos temas que o habitam não chegaram a ser batizados, à exceção de um ou outro, como “Wask” ou “Cave”. Também é de notar a quantidade mínima de meios dos quais Canavarro dispôs para o tocar: apenas uma cassete de oito pistas, um sampler de 8 bits e um sintetizador Ensonic Mirage. Mas seria preciso muito mais? Foi muito graças ao pouco material que Canavarro se viu obrigado a exercitar a sua musculosa força criativa, através do recorte e da colagem que nem Matisse na velhice: só que, aqui, as cartolinas coloridas são substituídas por uma chuva oblíqua de notas repetidas, batidas surdas e vozes ao longe. É um exercício espantoso, mas que, carecendo de versos e refrões, não conseguiu penetrar os frágeis ouvidos que Portugal acabara de adquirir para música um pouco fora do normal. Das poucas cópias que gerou, vendeu também poucas.

No entanto, chegavam prontamente os anos noventa, e com eles uma nova geração que crescera de olhos e ouvidos postos no que se passava num lá fora que crescera para lá da austeridade cultural portuguesa. Para esta recém abertura a novas formas de fazer a música contribuiu o próprio Canavarro, que, apenas três anos depois, editou, a meias com Carlos Maria Trindade dos Heróis do Mar a esdrúxula coletânea sonora Mr. Wollogallu. No entanto, foi no mesmo ano, o de 1991, que Plux Quba viria a ganhar um importante novo fã: Jim O’Rourke, guitarrista dos Sonic Youth, entre muitas outras coisas. O’Rourke atravessava a Alemanha de comboio, na companhia de Jan St. Werner (dos Mouse on Mars e Microstoria) e de Carsten Schulz. Cruzaram-se com o misterioso vinil por acaso, e O’Rourke apaixonou-se por ele, aquele diamante em bruto impresso numa língua que desconhecia, a mesma falada num pequeno país na porta de saída da Europa chamado Portugal. Por ele, criou a editora Moikai, e re-editou o disco em 1998, entregando a nova masterização ao guitarrista português Rafael Toral. E, assim, Canavarro apresentou-se a um mundo desejoso por conhecê-lo.
Canavarro nunca deixou de existir no simpático nicho cultural que encontrou para si e para as suas ideias num Portugal que, lentamente, ia criando divisões cada vez mais amplas para quem queria passar a vida a fazer arte estranha. Continuou a tocar e a compor, principalmente para bandas-sonoras. Em 2008, estreou-se no cinema com Casa da Montanha. Mas, como um fantasma, Plux Quba permanece o seu mais fascinante feito, talvez por ser daqueles discos que, ao ouvirmos, mal acreditamos que foi plantado na lama que sempre nos convencemos que é a capacidade portuguesa de fazer coisas novas. E, principalmente, há tanto tempo atrás. Ao ouvir Plux Quba, julgamo-lo uma preciosidade que só pode ter vindo de sítios onde habitam seres humanos maravilhosamente estranhos e criativos, como Helsínquia ou Londres, ignorando que eles sempre se esconderam no meio de nós. E que podia ter sido gravado ontem ou anteontem. O revestimento criativo de Plux Quba permite-lhe adquirir o estatuto de sonho de um disco que nunca conseguirá envelhecer, soará sempre fresco, novo, estranho. E é um dos melhores discos experimentais portugueses de sempre (e um dos 200 melhores da década de oitenta, segundo a Pitchfork): nem é sequer por haver poucos.