Ziggy Stardust deu a David Bowie a fama de que ele precisava, mas não necessariamente a que queria. O alienígena andrógino, descido à terra para salvar o mundo com mensagens de paz e de amor, acabou por se tornar num fardo demasiado pesado para o homem que lhe vestiu a pele, que nunca pensou na máscara Ziggy como sendo a de um Messias; e se é certo que o evangelho de Ziggy ainda perdurou para lá do álbum que lhe deu nome, encontrando ecos nos títulos subsequentes – Alladin Sane e Diamond Dogs –, foi com Young Americans que o Homem das Estrelas concebido por Bowie pôde, finalmente, descansar em paz após o seu suicídio rock.
Young Americans marca um enorme momento de viragem na carreira de David Bowie. De repente, não era apenas o rock n’ roll a ditar as suas poses, os seus mecanismos, as suas interpretações teatrais e mesmo o seu vestuário; passaria a existir igualmente espaço, no mundo de Bowie, para outros estilos e géneros musicais, da soul à electrónica cósmica, da pop mais expressiva às tendências experimentais que mais lhe agradavam. Nos primeiros tomos da sua vasta discografia, encontramo-lo à procura de uma identidade própria, a fase trial and error em que, não obstante a qualidade das canções, não existia ainda a personagem, o mito. Esses chegaram, claro está, com Ziggy – que acabou por se tornar um fardo demasiado gigante para um homem que, como Álvaro de Campos, pensou ser tanta coisa…
Daí que, em Young Americans, Bowie se apresente liberto, pela primeira vez, das suas amarras. É o início do seu real camaleonismo, o salto em direcção ao mantra Crowlyano: Faz o que tu queres. É a era da soul de plástico, como ele próprio chamou à música que aqui se escuta, uma sonoridade que não é uma mera emulação da música negra, mas sim a sua transformação às mãos de um artista branco. Ironia injectada no suor e no sexo potenciados pelo funk, ampla crítica ao mundo das estrelas pop – em suma, a pá que enterra Ziggy Stardust, ainda vítima do sonho hippie. Uma crítica presente não só na música como também na capa, onde temos um glamouroso Bowie sob luzes de néon, evocando tudo o que no mundo do espetáculo se encontra para além da obra, retrato-anúncio que, ao contrário das capas dos seus álbuns anteriores, não poderá nunca valer como uma obra em si. Não é icónico; é só um produto.
Mas apesar dessa nonchalance ríspida e em toda a falsidade que Bowie tentou implementar na não-personagem que canta títulos como a canção maior de Young Americans, “Fame”, há um amor muito maior aqui presente que ultrapassa essas mesmas noção daquilo que se descreve como “plástico”; há uma alma verdadeira, a de um Bowie fã, de tal forma obcecado com este género em particular que procurou ter nascido, ele próprio, na América negra onde pilhou tais sons. Young Americans não é uma paródia nem uma regurgitação da soul, é um tributo. E tão tocante, que foi com este disco que Bowie se tornou um dos poucos artistas brancos a actuar no programa televisivo Soul Train, em 1975.
Claro que, para tal, em muito contribuíram os músicos que angariou: Luther Vandross, Andy Newmark e Carlos Alomar, todos com raízes na soul. E o próprio facto de ter sido gravado em Filadélfia espelha a direcção que Bowie queria seguir em Young Americans, já que esta é a cidade-berço da chamada Philadelphia Soul, caracterizada por uma apetência muito maior pelo funk. Contudo, a maior surpresa é a inclusão de John Lennon, que não só contribui com guitarra e voz na versão aqui assinada por Bowie para “Across The Universe”, dos Beatles, como é, ele próprio, co-autor de “Fame”. O que é, também, irónico; eis uma das grandes estrelas pop dos anos 60 e 70 a colaborar num álbum que critica as estrelas pop.
Do gospel de braços no ar do seu tema-título, com uma secção de sopro a dar vida ao barro, passando pelo groove de “Right”, pela pregação em “Somebody Up There Likes Me” (é difícil acreditar que a garganta que aqui se escuta seja de plástico…) e, finalmente, pelo auge funk de “Fame”, Young Americans, para além de ser ponto de viragem na carreira de Bowie, é uma das suas obras mais notáveis – a prova de que em toda aquela ambiguidade anterior existia uma luxúria à espera de se soltar, e um coração prestes a ceder aos encantos da dança.
Depois do plástico, viria o lado negro de um duque branco; depois disso, viria o Bowie moderno, radicado em Berlim mas pensando em todo o mundo, antes de o chocar de frente com a pop desvergonhada e televisiva de temas como “Ashes To Ashes” e “Let’s Dance”. Young Americans é, contudo, único, um ponto na longa história de Bowie onde o músico pôde deixar de parte as peles que vestia e voltou a vestir e limitar-se a ser, não Ziggy, não camaleão, mas apenas David Bowie, o melómano erudito que valorizava o sossego tanto quanto a exuberância. Um álbum tão essencial quanto os seus clássicos.