Escolher um disco de David Bowie para constar neste Especial, não foi tarefa fácil. Mas também não foi hercúlea, visto que, a meu ver, só um outro disco mereceu a minha forte ponderação para com este disputar a primazia. Não quero com isto dizer (longe disso, muito longe mesmo) que apenas dois discos de Bowie são, para mim, excelentes discos. Até aos anos 80, quase todos são soberbos, aliás. Mas ter de escolher aquele que mais gosto, embora consciente de que ao longo dos tempos a minha opinião não tenha sido sempre a mesma, não se revelou tarefa simples. No entanto, julgo agora (e em definitivo, suponho), que o melhor disco de David Bowie é Station To Station, se bem que estas certezas encerram sempre uma margem de erro considerável. Mas o que importa isso, se a dor ainda pesa no meu coração de ouvinte dedicado aos encantos deste meu ídolo tardio? Que interesse tem, pelo menos para mim, a escolha de um qualquer bom disco de Bowie, se o que está verdadeiramente em causa é Bowie e aquilo que ele representou e representa. Mas foi com o Station To Station que fiquei, é sobre Station To Station que irei escrever, e isso apenas quer dizer, verdadeiramente, que fiquei com um disco de Bowie, o que é já coisa suficiente para me satisfazer.
O álbum foi lançado em 1976 e era o décimo da sua carreira. Continha apenas 6 faixas, distribuídas irmãmente pelos dois lados do vinil. Na continuação da sua vertente de homem-mutante, Station To Station trazia um novo “character”: The Thin White Duke! Foi descrito, por ele próprio, se não me falha a memória, como um “mad aristocrat”, “an amoral zombie”. Bowie estava num período em que vivia de pimentos vermelhos, leite e cocaína. Nunca a droga o consumira tanto. (A droga, mas também o peso da vida, que não deixa, por vezes, de ser uma droga igualmente letal). Foi, segundo ele mesmo, o pior momento da sua existência, mas no entanto, e musicalmente falando, Station To Station é um trabalho fascinante. Tem, por exemplo, “Word On A Wing”, essa canção de Bowie que tanto me fascina… Mas também podemos ouvir “Stay”, “Wild Is The Wind”, “Golden Years”, “TVC15”, a assombrosa faixa título, o disco todo, enfim!
Na receção crítica feita ao disco, muitos foram os que referiram a sua pose de supremo ariano, descortinando em Bowie uma suposta vertente nazista. Ainda está presente na cabeça de muita gente o cumprimento hitleriano que Bowie terá usado quando saudou os que o aguardavam em Londres, naquele que ficou conhecido como o Victoria Station incident, embora Bowie sempre tivesse negado a dita saudação, afirmando que a fotografia que lhe foi tirada o apanhou a meio de um gesto. Não é por estas razões, obviamente, que escolho Station To Station. Escolho-o porque é um manifesto musical repleto de ideias novas, juntando uma pitada de soul e de funk ao novo som frio, quase gélido, que algumas bandas alemãs teimavam em mostrar ao mundo (como Neu!, CAN ou Kraftwerk, por exemplo). Escolho-o por ser um disco que transita, que se movimenta em tempo real, que progride para a fase que muitos consideram ser o pináculo da sua criação artística. Sente-se em Station To Station um delicioso fascínio pela música electrónica, pela batida motorik, por um desenho sonoro ainda não experimentado pelo músico inglês. É, sem dúvida, um disco de transição. Depois de Station To Station, veio a famosa trilogia de Berlim, comandada por Brian Eno. Mas para mim, Station To Station é um trabalho ainda superior a Low, Heroes ou Lodger, disco este que já acusa o típico cansaço de um final de caminho criativamente sinuoso e cativante.
Mas falemos agora das canções de Station To Station, uma a uma, uma vez que todas merecem destaque. São apenas seis, como sabemos. A abrir o disco, a canção com o nome que o álbum tem. “Station To Station” é poderosa como poucas do disco, embora arranque devagar, com o som do comboio a vapor que a inicia, levando-nos depois para o espaço do rock à boa maneira de Ziggy, pontuada por referências a Aleister Crowley e aos seus poemas erótico-pornográficos (White Stains), mas também à cocaína que o consumia, até porque é The Thin White Duke quem se apresenta a atirar dardos aos olhos dos amantes. Depois vem “Golden Years” com o mesmo soul-funk que vinha de Young Americans, tendo sido escolhida para primeiro single do álbum. Se o som é festivo, e disso não sobra ponta de dúvida, a análise da letra aponta para as confusões mentais do uso da já referida droga. Segue-se a superlativa “Word On A Wing”, canção que amo com todas as minhas forças, talvez mais do que qualquer outra de Bowie. Nunca um pedido de ajuda tão sério me pareceu tão poético e belo ao mesmo tempo. O terror psicológico que viveu um ano antes, ao filmar The Man Who Fell To Earth, volta a estar presente neste tema que nos revela Bowie à beira do precipício, equilibrando-se e tentando estar apto para o enfrentar, enfrentando, ao mesmo tempo, a decadência da sua própria existência. Deus ouviu-o, até porque era para ele que o pedido de ajuda se dirigia, e ajudou-o a lidar com o “scheme of things”. “TVC15” é uma canção estranha, supostamente baseada num facto tão risível quanto preocupante: o seu amigo Iggy Pop, num momento “very very high” terá afirmado que a sua TV estaria a comer (sim, não é outro o verbo) a sua namorada da altura! Para além disso, o piano de Roy Bittan e a guitarra de Carlos Alomar espalham magia… Depois vem o wah-wah funk da guitarra de “Stay”, e esta é a canção em que a banda de Bowie comanda, imperialista, sobretudo nos magníficos dois minutos instrumentais que não deixam ninguém indiferente. Até que, finalmente, o álbum termina. É com “Wild Is The Wind” que termina a viagem louca de Station To Station. A única canção do disco não escrita por David Bowie é arrasadora! Bowie canta-a imaculadamente, concluindo da melhor maneira um trabalho melodramático como poucos existem na carreira do músico de Brixton.
Chegados ao fim, agora que outro e bem terrível fim aconteceu, deixo-vos aqui este convite para que futuras visitas venham a ser feitas a este precioso momento da carreira de Bowie. É só preciso que tire bilhete para viajar de station to station sem sair do mesmo disco!