Diamond Dogs, o oitavo disco de David Bowie, foi cilindrado pela crítica na altura em que foi lançado. Ken Emerson, da revista Rolling Stone, escrevia em Agosto de 1974: “Claramente, David Bowie não é o “homo superior” que ele afirma ser e em que muitos acreditam. (…) Mas certamente Bowie desapontou até o mais fervoroso fã. Aladdin Sane foi uma frustração, Pinups, vulgar e agora surge Diamond Dogs, provavelmente o pior disco de Bowie dos últimos seis anos.”
Será mesmo assim? Será o disco tão mau ou dar-se-ia o caso, tantas vezes repetido, da sua música estar à frente do seu tempo? Um disco nada consensual dum artista maior.
Diamond Dogs foi editado em 1974. O disco ficou marcado por uma viragem na sonoridade e no processo de escrita de David Bowie, influenciado pela Cut-up technique (uma espécie de processo de escrita automática), de William S. Burroughs e também pela reaproximação a Tony Visconti, o produtor que o acompanhou nos seus primeiros discos e que o havia de seguir até ao final do seu percurso.
Nesta altura, David Bowie era um caldeirão efervescente de sensações e emoções antagónicas. Havia viajado (em digressão) pela Europa de Leste, testemunhando diversas sociedades totalitárias, sugando informação e inspiração como um vórtice. Embora estivesse ainda imerso no espírito e nas drogas do glam rock, procurava distanciar-se das suas antigas personas. Ziggy Stardust tinha anunciado o seu fim durante o concerto de 1973 no Hammersmith Odeon, em Londres. Ao encerrar a sua fase glam, buscava novo rumo e novas sonoridades. Não escondia o seu fascínio por Mick Jagger nem a admiração por Bruce Springsteen, duas das maiores inspirações de Bowie na época. A sua banda de suporte dos anos anteriores, colaboradora dos seus melhores trabalhos, “The Spiders From Mars”, fora dispensada neste disco. É o próprio Bowie o principal responsável pela guitarra e talvez a crítica especializada tenha sido justa ao referir que a ausência de Mick Ronson terá sido fatal para uma melhor estruturação do disco (ainda que este tenha preparado os arranjos para algumas músicas). Em Diamond Dogs é David Bowie que está em pleno controlo: o estúdio é ele mesmo um instrumento, espaço ideal para a experimentação.
Fascinado pela obra distópica de George Orwell “1984”, Bowie idealizou um trabalho conceptual que incluía música e performance teatral. No entanto, não havia de conseguir os direitos de autor para trabalhar no pretenso musical, negados pela viúva de Orwell que odiara o projecto, acabando por introduzir outras ideias que nada tinham a ver com a sociedade totalitária que todos vigia e escrutina, descrita no livro publicado em 1949.
O disco começa com “Future Legend”, uma narração com pouco mais de um minuto, sussurrada por Bowie, que nos transporta para um universo pós-apocalíptico onde as pulgas têm o tamanho de ratos e os ratos o tamanho de gatos, comparando os habitantes humanoides a matilhas de cães. A introdução desemboca no grito “This Ain’t Rock and Roll, This Is Genocide!”, o início aparatoso e proto-punk do tema título “Diamond Dogs”, onde nos é apresentada uma nova personagem: metade humano, metade cão (como nos é mostrado na capa do disco) que habita uma Manhattan decadente e perigosa, parecendo diretamente saída do universo de Freak Show, de Todd Browning. E o álbum continua com “Sweet Thing”, a canção mais bonita, com a intensidade emocional característica de Bowie e prossegue com “Candidate”, “Sweet Thing (reprise)”, “Rebel Rebel”, “Rock’N Roll With Me”, “We Are the Dead”, “1984”, “Big Brother” e “Chant of the Ever Circling Skeletal Family”. Trata-se de um disco e de um artista em permanente sobressalto, entre um mundo ruinoso e vigilante de uma sociedade decadente e um outro mundo em que Ziggy Stardust, ainda um pouco presente, vai desaparecendo, dando lugar a uma outra criatura com sede de soul e de funk – vontade esta confirmada no álbum seguinte, Young Americans.
Não se podendo separar esta obra do restante trabalho de Bowie, torna-se impossível não a comparar com os seus outros discos e canções – muitas delas das melhores alguma vez feitas. Mas este álbum será sempre um excelente trabalho onde cada canção é diferente da anterior. Versa os mais variados estilos, inspirando (e inspirado em) encenações literárias. Mesmo nos momentos em que parecia estar desencaminhado, David Bowie indicava-nos o caminho.