Anos 70 olhados em retrospectiva, Bowie viveu de mortes. Suicidou a ruiva figura imolada por teenagers mil. Dividiu-se pela soul de um aristocrata ariano com linha branca ténue; ao cheirar de vício a sua destruição, matou-o antes que sucedesse o inverso. Entre muros, destruiu todos os que emitissem som em Berlim.
Talvez preconizando o horrível da década que se seguia, Bowie propôs um funeral dos funerais: o glorioso enterro do período cânone da sua obra, requiem magistral para o camaleão de 1970. Aqui jaz Major Tom (“Ashes to Ashes”) e assina-se o epitáfio da editora berço de toda a sua obra nos 10 anos anteriores, a RCA. Seria a última vez que o guitarrista de “Heroes” (o Crimson Robert Fripp) marcaria presença num álbum seu, assim como a (excepcional) secção rítmica que o tinha acompanhado desde “Station to Station”. Tony Visconti ausentar-se-ia da mesa de produção por 20 anos. Tinha nome, este funeral: Scary Monsters (And Super Creeps).
David promovia este álbum afirmando-se “Often Copied, Never Equalled”. Factual: Bowie era inigualável, inatingível – todavia estava, no alto do seu trono, mais solitário, paranóico e inconsolável do que nunca. Retorcia a sua canção-hino de gerações “Heroes” em “Teenage Wildlife” no intuito de lançar farpas aos imitadores new wave que viviam dos moldes da sua arte (“A broken-nosed mogul are you/One of the new wave boys/Same old thing in brand new drag”), falava de amores separados pela violência opressiva de entidades policiais/políticas sinistras (a desconcertante história do narrador de “Scream Like a Baby” e do seu companheiro Sam), mandava-se calar para cessar a gravação de uma faixa enquanto desesperava com a fama (“It’s No Game (Part 1)”); gritava, exagerava, exasperava, desconcertava como nunca – a sua voz descontrolada e selvagem, ainda mais do que parecia já impossível.
Essa paranóia é transportada para as canções no que é a melhor fusão entre experimentalismo e acessibilidade da carreira de Bowie. Na primeira parte de “It’s No Game” berra desconsoladamente ao ponto da rouquidão frente a um baixo hiper-melódico, enquanto Fripp lança electricidade e selvajaria a cada segundo da faixa – é uma abertura fulgurante para um álbum de extremos, de imprecisões, de jeito desajeitado. “Ashes to Ashes” corta com o passado (“My momma said/If you wanna get things done/ You better not mess with Major Tom”) num funk plástico, pegadiço e abracadabrante; liderando a canção uma linha de teclado bamboleante destoa-nos as ancas no que é uma das mais divertidas, agridoces e pegadiças canções da carreira do camaleão: nesta faixa, vocalizações e harmonizações heteredoxas, métricas irregulares e melodias de canções de embalar juntam-se para formar o que é um olhar impedioso e resoluto de um artista para com os seus hábitos passados conturbados (“Ashes to Ashes/Funk to funky/We know Major Tom’s a junky”). A pop dos 60s marca presença em “Up The Hill Backwards”, todavia é todo menos solar o tema cantarolado em coro, apesar da produção doce e calorosa. A colossal faixa título ameaça entrar em combustão: entre a loucura da voz bizarramente filtrada de Bowie, a percussão punk fervorosa e as electrizantes mil notas por segundo de Fripp, contam-se histórias de descensão à loucura. O glam rock no som e no modus operandi – gesto largo, desmedido, ambicioso.
Talvez com o intuito de provar que era realmente “Never Equalled” e deixava uma marca (superior) em tudo o que tocava, este era o álbum mais contemporâneo, e influenciado pelo mundo musical exterior à sua obra, de Bowie até à altura (mais recentes flirts com drum’n’bass refutariam esta afirmação): isto é música que, não obstante todas as suas mutações e artifícios de estúdio, é firmemente enraizada no punk de bandas como Modern Lovers ou Television – “Kingdom Come” é até escrita pelo frontman dos últimos.
Não muito coincidentemente, o álbum acaba, pelo que seria a primeira vez na sua carreira, a soar auto-referencial. “Fashion” e “Because You’re Young” abanam-nos como só Thin White Duke nos faria abanar. E será que Ziggy rejeitaria a segunda parte de “It’s No Game”, faixa que encerra o disco? Tudo intencional. É exactamente isto que um funeral é suposto fazer: celebrar aqueles que partiram, celebrar aqueles que já não voltam mais.