A australiana Courtney Barnett já tinha gravado uns EPs engraçados mas nada nos tinha preparado para a perfeição do seu álbum de estreia, o único este ano capaz de se medir com o luto agridoce de Carrie & Lowell.
Tem-se dito tanto sobre o brilho das suas letras que às vezes se descura o óbvio: fora este disco cantado em finlandês e continuaria a ser um dos melhores. Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit é um daqueles raros álbuns em que todas as suas canções facilmente enganariam o porteiro numa festa privada só para singles. Fazer isso quase sem cantar – ou cantar à Lou Reed, o que é a mesma coisa – torna a proeza mais assinalável. A referência ao ícone nova-iorquino não é inocente. Por muito descarado que seja o flirt de Courtney com o grunge e demais rock alternativo dos nineties, mais desavergonhado ainda é o piscar de olhos aos Velvet: as guitarras indolentes, o gingar rufia, a elegância do desaprumo, os solos despenteados, a expressividade máxima retirada da máxima inexpressividade, não deixam dúvidas em relação à sua nobre linhagem. Se “Pedestrian at Best” é talvez o “Smells Like Teens Spirit” do século XXI, então “Elevator Operator” será certamente o seu “Waiting For The Man”.
Mas debrucemo-nos sem mais delongas sobre aquilo que de facto torna este disco tão especial: a inteligência das suas letras. Courtney é uma mestre do detalhe e do quotidiano, e como nas coisas da pop o menos é sempre mais, é através de pequenas fotografias do dia-a-dia que Barnett nos faz rir e chorar. Encontramos o modelo desta simplicidade em “Depreston”, talvez a canção mais bonita do disco, e a única que vamos aqui dissecar, para protegermos os outros especímenes do nosso vil bisturi.
Courtney começa por descrever uma banal visita a um imóvel num qualquer cinzento arrabalde. O estilo é mordaz e escorreito, driblando as rimas com mestria, fazendo-nos rir. Mas, velhaca, Barnett não dá ponto sem nó. Tanta leveza e humor têm um ardiloso propósito, o de baixar a nossa guarda para o murro no estômago que virá a seguir. Aos poucos, vamos vislumbrando os vestígios deixados pela anterior proprietária: uma casa de banho adaptada, uma fotografia de um soldado no Vietname, uns bibelots tão kitschs como solitários… Quando damos conta, já uma imensa melancolia tomou conta de nós. Sem recurso a qualquer sentimentalismo, ou mesmo sequer a um fio narrativo, acreditando simplesmente na inteligência e sensibilidade do ouvinte para captar o ausente mas implícito, Courtney consegue trazer para a nossa beira os grandes temas da condição humana- o amor, a perda, a morte.
Esta capacidade para chegar ao profundo através do banal, ao universal através do particular, ao dramático através do risível, ao humano através das simples coisas, a nós próprios através do espelho com os demais, mostra que Courtney Barnett não é apenas o último hype da temporada indie outono/inverno, mas sim uma songwriter que veio para ficar, merecendo desde já começar a ser medida por comparação aos maiores. Dylan, Waits, Cohen, Barnett… Não vos soa bem?
Ao que Courtney, com a sua camisa de flanela amarrotada e os seus grandes olhos desmazelados, retorquirá num bocejo: “põe-me num pedestal e apenas te desapontarei / chama-me excepcional e prometo que te exploro / dá-me todo o teu dinheiro e farei origami com ele/ acho que és uma piada mas não te acho muita graça…”.
É justo.