O quinto disco dos Clã, Cintura, tem sido criminosamente subestimado. A sua pop leve e colorida, risonha e dançante, é um dos momentos mais criativos da banda.
Os Clã não gostam de se repetir, cada disco novo é uma oposição ao anterior. Onde Rosa Carne era sombrio, difícil e denso, Cintura é soalheiro e descomplicado, desavergonhadamente pop. A secção rítmica é rainha e senhora, destacada na mistura, convidando-nos para dançar (uma celebração pagã do corpo e da vida). A própria guitarra de Hélder Gonçalves (ou baixo picollo, seja lá o que isso for) é usada muitas vezes de uma forma percussiva, com salpicos funk. As teclas são de feira, música de parque de diversões a inebriar-nos os sentidos, um aroma forte a farturas no ar. Tudo por aqui tem essa leveza de algodão doce, esse travo a mágica infância, essa vontade de girar e girar. Os arranjos são elegantes e inteligentes, ou seja, são os Clã.
Não houvera grandes canções, a colorida roupagem de nada lhes serviria. Acontece que as melodias são bonitas e trauteáveis (ideais para assobiar no chuveiro) e as palavras têm o selo de qualidade do costume (Carlos Tê, Arnaldo Antunes, Regina Guimarães e Adolfo Luxúria Canibal não sabem escrever maus versos).
A cintura do nome é fina, havendo aí continuidade com o também feminino Rosa Carne. A mulher retratada é, porém, diferente nas duas rodelas: Eva lasciva e assombrada em Rosa Carne, manchada pelo pecado original; mulher afirmativa em Cintura, mergulhando de cabeça na aventura da vida, sem culpas ou segredos que a atormentem.
Cintura tem outra particularidade: os seus singles não se destacam sobre os demais temas. Isto não é uma fraqueza: é apenas sinal de uma louvável consistência. Se o falso disco sound de “Tira a Teima” (primeiro single) é, de facto, primoroso (inesquecível quando Legendary Tigerman pega no megafone e faz de louco pregador), o não single “Pra Continuar” não lhe fica nada atrás, circular como um carrossel, rodopiando como uma criança feliz (que bonito é o seu coro de fundo dissonante à Philip Glass).
“Sexto Andar” – uma canção sobre as canções, elogiando o seu poder salvífico -, consegue traduzir em música a sensação de maravilhamento (até faz cócegas na espinha!). O Led-Zeppelin-III-esco “Amuo”, com a sua guitarra acústica tribal, tem um delicioso momento spoken word: a doçura de Fernanda Takai repetindo em eco a rouquidão de Manuela Azevedo.
Cintura é também um disco criminosamente subestimado. Quando se pergunta a um fã qual o seu “Clã” favorito, as respostas oscilam invariavelmente entre Kazoo, Lustro e Rosa Carne. O desgraçado do Cintura fica sempre esquecido, quando não lhes fica em nada atrás. Se este texto não servir para mais nada, além de um convite para ouvir de novo Cintura, já valeu a pena escrevê-lo. O seu encanto virá ao de cima.