Cian Nugent encontrou a sua “voz”? Depende do que entendermos por voz. É verdade que a manifesta vocalmente na música com Night Fiction, de uma forma inaugural: nunca o tínhamos ouvido aproximar-se tanto do formato canção (e cantar tanto, com refrões declarados) como aqui.
Por outro lado, importa não desvalorizar o que está atrás, só porque não tem esse lado mais imediato da música pop (num sentido abrangente do que é a pop, atenção, porque daqui não se espere “pop” no seu sentido mais banal, com canções e refrões simples para afagar o ouvido). Oiça-se, por exemplo, o seu magnífico e inventivo álbum de 2013, Born With The Caul, que editou com os seus The Cosmos (que também contribuem para a grandiosidade de este Night Fiction, com bateria, baixo, órgão, piano e viola d’arco).
Isto tudo para introduzir Night Fiction com o devido contexto: é um magnífico álbum, sim senhor, e (presume-se) aquele que lhe dará uma primeira notoriedade (justificada) no panorama indie, mas não é, de forma alguma, o início de um percurso, e não apenas por ser o seu terceiro álbum mas porque já vem contribuindo para o panorama rock há tempo (e de variadas formas).
O que temos, então, com Night Fiction? Alguém que passou de um guitarrista — mas, mais do que isso, um músico, termo que o engrandece, mais ao nível do seu talento — dotado, conhecedor e reinventor da tradição rock e folk-rock, para um escritor de canções de mão cheia (o que, repito, não digo com qualquer julgamento subjacente, bom ou mau), que sabe ir mais directamente ao ouvido de quem o escuta (atingindo um universo potencialmente maior de ouvintes) sem perder, ainda assim, a sua “natureza”, o bom gosto, a delicadeza que contrasta com o rock urgente, a ideia de música como prazer, mais do que como entretenimento.
Night Fiction ouve-se rapidamente, sem se dar sequer por isso (no bom sentido da expressão). Ouvimo-lo sobretudo a usar a guitarra novamente com mestria, quer a servir as canções e a sua voz (que, não sendo fabulosa — e desde quando é que isso se tornou essencial? —, tem a compreensão necessária para se fazer ouvir sem histrionismos e sem violentar o que lhe serve de base), quer a perder-se momentaneamente na beleza do som, com solos do melhor que se tem ouvido no panorama rock actual.
E é precisamente essa combinação que leva a que seja tão agradável ouvir (e entoar) temas como “Things don’t change that fast”, e ouvir os épicos (sem soar minimamente foleiros) instrumentais em “Shadows” e “Year of the Snake”, por exemplo. Chega mesmo a acontecer, durante a escuta do disco (pelo menos a mim), não esperar já que a voz de Cian Nugent regresse, e ela volta quase sem dar por isso (isso acontece, sobretudo, no último tema), de forma tão agradável quanto inesperada. Ora suavíssimo e melancólico, ora expurgando o que dessa suavidade sobra em jams que nos recordam do que o rock ainda pode ser.
Na nota que introduz o álbum no site da sua editora (a fabulosa Woodsist, que tanto tem contribuído para dar a conhecer músicos fantásticos) fala-se em influências como The Velvet Underground — sobretudo, presume-se, através dos delicados combos rock e do (des)encantamento de Loaded —, Richard Thompson, Television, Neil Young, John Lennon e Fred Neil. A Stereogum aponta que, nos momentos de maior liberdade instrumental, o disco evoca as jam dos Grateful Dead e de Allman Brothers Band. E ouve-se ainda arranjos à Bill Fay em “Shadows”, por exemplo. Talvez menos “condenados”, mas igualmente grandiosos. E o dedilhado mágico de “Lucy”, onde se põe ao lado, por exemplo, do seu contemporâneo Daniel Bachman, fazendo de acordes de uma guitarra acústica uma banda sonora existencial, sóbria, imensamente bonita.
Com Night Fiction, Cian Nugent ascende ao patamar de músicos modernos que se movem entre o rock e a folk, tudo fundido num caldeirão aprazível, com a delicadeza cuidada de quem muito ouviu e muito praticou, até chegar a “isto”. Está logo ali, ao lado de nomes como Cass McCombs e Kevin Morby, por exemplo, na categoria de cantautores que me fazem (pelo menos a mim) ter orgulho em ter nascido nesta Era (em tempos de tanto saudosismo), que fazem música inventiva com uma aura clássica e delicada que dificilmente será ridicularizada no futuro. Cian Nugent nasceu em Dublin mas podia ter nascido em Chicago ou no Texas, por exemplo, sem perder as raízes. Celebremos por isso — e aproveitemos a dádiva de um disco memorável.