Num ano que se revelou tão exaustivo como o que foi 2016, Rui Carvalho, mais conhecido no mundo da música como Filho da Mãe, presenteou-nos com Mergulho, um disco subtil mas eficaz, que nos permite fechar os olhos e viajar para mundos mais agradáveis.
Com o ano chegado ao fim, olhamos para trás ensaiando uma recordação distante da inocência esperançosa com a qual aguardávamos o seu início. Foi um ano brutal, que deixou muitos frustrados, cansados, de olheiras a roçar nos lábios de ler notícias sobre notícias menos agradáveis que deixavam na boca o sabor amargo a um ano temível para o mundo, um mundo cada vez mais dividido e zangado, cada vez mais cruel e impiedoso, que nos deixou também mais pobres com os tantos nomes queridos que a morte ceifou.
Foi num ano temível como este, tão violento como ruidoso, que nos chega de mansinho, quase sem darmos por ele, o segundo registo a solo de Rui Carvalho, virtuoso guitarrista mais conhecido por Filho da Mãe. Seguindo-se a Cabeça (2013), Mergulho encanta e surpreende sem se despedir da fórmula bem calculada que nos fez apaixonar pela guitarra de Carvalho à primeira vez.
São doze as faixas, que escorregam umas nas outras como um rio desagua num mar silencioso, orientando-se por um fio condutor líquido e fácil de seguir: cada faixa se funde na outra, lembra a próxima, saboreando-se o disco não tanto como sobremesas separadas mas sim uma refeição que nos deixa o estômago satisfeito.
Mergulho é assim: um disco pequenino, discreto, sedutor, que facilmente passa ao lado dos ouvidos de quem só ouve quem eleva a voz: Rui Carvalho não tem de gritar, enquanto abre ao ouvinte as portas para uma sonoplastia delicada e colorida, tecida pelo virtuosismo dos seus dedos aplicados sobre as cordas – e é tudo o que é preciso. No entanto, seria fácil cair na ideia de que um disco imaginado dentro de uma guitarra poderia relevar-se uma dormência constante ou uma exposição de truques de circo que aborreceria tremendamente o ouvinte. Mas Rui Carvalho não precisa de truques, e a cada vez que estrangula as cordas da guitarra num acorde que nos faz erguer uma sobrancelha, não é em vão, construindo nos seus temas, curtos e concisos, cheirinhos de universos ocultos que só ele consegue fazer cantar num só instrumento.
Rui Carvalho é de uma inteligência rara num mundo em que há uma febre por lançar disco atrás de disco sem deixar o público mastigar um sem engolir o outro. A sua fórmula é simples, mas fácil de destruir: o quão fácil seria fartarmo-nos das suas galopadas melódicas ao longo do traste do instrumento se por ele fossemos perseguidos constantemente? Mas Filho da Mãe compreende a delicadeza da operação: tal como evita o truque, evita a demasia, o excesso. Apesar de ser o seu segundo esforço musical em 2016 (Tormenta, com a percussão de Ricardo Martins, saiu uns meses mais tarde), Mergulho é um degrau acima de Cabeça, de 2013, o capítulo seguinte, que deixou respirar durante três longos anos. Não é senão uma mesmice evoluída, canções-família, que tombam umas nas outras pouco importando a ordem, que cansaria facilmente. Mas não com Filho da Mãe a segurar na guitarra. Mergulho é uma construção refinada, sem pressas, sem euforias. Que sabe bem num ano tão eufórico que nem deu tempo para parar para respirar fundo. E mergulhar.