C. Tangana, de seu nome Antón Álvarez Alfaro, não é um novato nestas andanças da música e já era conhecido antes pelo hip hop em Espanhol com boas misturas de estilos. Mas com este El Madrileño consegue a sua obra prima. Foi também o disco mais ouvido em Espanha em 2021.
Antes de mais, este foi um disco que demorou meses a entrar, que foge da minha zona de conforto habitual mas ao qual regressava porque havia sempre uma sensação de que além de bem feito e produzido, havia referências interessantes. Talvez a coisa, para mim, tenha entrado graças ao vídeo Tiny Desk Live at NPR (vale a pena espreitar e ainda tem como bónus um verso de New Order), onde Tangana, rodeado de gente, está confortável e domina o espaço das canções que, quando partilha o espaço com lendas como Kiko Veneno, é algo que seria fácil de escapar da mão.
Uma localização total deste estilo musical nas raízes de Espanha e Madrid é o cerne deste El Madrileño. Com samples de Joselito e referencias a Alejandro Sanz e outros marcos da cultura musical, com a óbvia presença da Copla e Flamenco, para já não falar de Gipsy Kings, Toquinho, Eliades Ochoa ou o já mencionado Kiko Veneno.
Mas se por um lado os “feats” são como uma garantia de um bom resultado, especialmente com estes nomes, não é por isso que a solo Anton Álvarez deixa de brilhar. Aliás, logo na primeira música, “Demasiadas mujeres”, podemos encontrar o tal sample de Joselito e as cornetas que anunciam que este não é o vosso disco de hip hop que se encontra em todo o lado. A canção versa sobre a própria personagem de Tangana, que ao fim ao cabo foi brilhantemente descrita por uma amiga como “um guna filósofo”. Será tema recorrente deste trabalho, uma abordagem menos material, que por exemplo tinha antes o seu hit “Llorando en la Limo”.
Na canção seguinte (uma canção com 246.000 de plays no spotify), com Niño de Elche, La Hungara, palmas de flamenco e sample de Los Chichos é esse também o tema. Afinal o homem tem sentimentos e isso persegue a temática do disco. Ele é abandonado, não esperava, não consegue esquecer…
Mas ninguém é unidimensional e um bom disco também não. Em “Comerte Entera” com o brasileiro Toquinho, além do som e sample do outro lado do atlântico, mistura-se o sentimento com a badalhoquice. Mas quem disse que tinha de ser exclusiva?
No geral o andamento do disco é calmo, quase em registo confidencial e muito levado com guitarras. A música mais dentro do hip hop, com muito de funk brasileiro, é “Nunca Estoy” com piscadela de olho a um hit de Alejandro Sanz.
Volta às palmas na colaboração com os Gipsy Kings, que provavelmente nunca conceberam a vida abaixo de 120 bpm nas suas canções. Estão também presentes Nicolás Reyes e Tonino Baliardo, e está montada a festa, onde as palmas e os gestos com o pulso são encorajados.
C. Tangana não se cinge a colaborações com espanhóis, como já se vira antes com Toquinho e depois com os mexicanos Ed Maverick (“Párteme la Cara”), Omar Apollo (“Te Olvidaste”), Carin Leon e Adriel Favela (“CAMBIA!”), com o portoriquenho José Feliciano (“Nominao”) e com Jorge Drexler, compositor uruguaio com um óscar de melhor canção original com “Al Outro Lado Del Rio” de Diários de Motocicleta.
A ligação à América Latina é forte e até o cubano Eliades Ochoa, um dos participantes no Buena Vista Social Club, aparece na canção “Muriendo de Envidia” que está mais do lado das cumbias e das bachatas. Como curiosidade, nenhum dos colaboradores de Tangana neste El Madrileño é do vem do hip hop, o que mostra um lado muito eclético, chegando a colaborar até com Pepe Blanco, cantor e ator espanhol falecido em 1981, numa canção, “Cuándo Olvidaré”, que mistura o vocoder com um som mais tradicional das terras dos nossos vizinhos. Nesta música atenção para o sample de Blanco, a incentivar ao canto em espanhol.
Quase a chegar ao final temos Kiko Veneno, cantor com mais de dez discos editados, que começou no flamenco mas já se aventurou umas vezes no pop e rock e depois, para terminar, o argentino Andrés Calamaro em “Hong Kong”, um tema que chega até a ter guitarras com distorção.
El Madrileño é muito mais que o seu ponto de partida do hip hop e acaba por ser uma viagem pela música falada em castelhano. Se tem uma parte que pode ser mais esquecível no meio, entre 14 músicas não é algo que chegue para ser relevante. É uma obra prima e se não o entenderem à primeira audição não se martirizem. Nem todas as obras de arte são reconhecidas à primeira vista. Agora, à décima precisam de ser surdos.
É um trabalho que demorou dois anos a ser composto e mostra maturidade de um artista que começou no rap, como Crema, e revelou que era um disco bastante autobiográfico, “com muito de homenagem ao meu pai” – disse em entrevista – onde quis assumir um vínculo com a identidade musical, mas também da cultura e história em que se insere o autor. Nunca passa das marcas e sente-se que trata os artistas e sons que convida para o seu disco com respeito. No fundo Antón Álvarez, Crema, C. Tangana ou como quiser ser tratado agora (na apresentação do disco intitulou-se Pucho) surpreendeu com um passo à frente.
Sem dúvida que este disco ficará marcado na história da música em espanhol e não só, como bom exemplo de mistura do tradicional com o moderno. Como li num comentário sobre o disco, “parece um quadro de Velasquez com música”.