Tanto Godard como Jarmusch fala(va)m da ilegitimidade autoral como se de teor renascentista: nada é original. Nada diz respeito a criacionismos. O génio não prolifera sem contexto. DJ Shadow, no arquetípico Endtroducing, meandrando pelo hip-trip-hop, parte da premissa que reitera e favorece a dependência desse preciso contexto, em homenageando aquele brilhante mash-up de mash-ups de anos antes designado Blue Lines. Esta ideologia, a de um espectral comunismo artístico, com certeza não se faz pioneira nas mãos de Shadow, mas é ele responsável por lhe trazer eco e repercussão, e é ele quem certifica a autenticidade de um registo intrinsecamente blasfemo, genuinamente corrompido, legitimamente plagiado na origem.
“It’s not where you take things from — it’s where you take them to”, e Godard, nesta ideia tumblr-core que vai tropeçando, em cada degrau mais descontextualizada (querida ironia), em meia dúzia de perfis, sintetiza o modus operandi, o conceito de DJ Shadow. Que lhe importa quem fez isto; vai daí um sampling. É reciclagem progressiva, progresso esse que resulta na dignificação da produção não enquanto necessidade estética de regularização e uniformização mas sim enquanto raiz criativa — que resulta na sample-culture de que Kanye West tira parte do mérito. Sem Blue Lines, sem Endtroducing, Kanye não seria.
Shadow puxa os cordelinhos; orquestra. A matéria-prima está por aí espalhada, e cabe-lhe revolver a textura à mão e arranjar e decorar. Deste corte-e-colagem, vem a delinquência sonora do álbum, de ’96, e de “Number Song”, em particular. É o ecletismo do leque de escolha que lhe confere o flow, as inflexões, a rica crispação e efervescência textural. O jogo joga-se por constância: o disco-ish big beat, retumbante num persistente headbang, persistente em sua elipse, o degradé para o tom meio funky Earth, Wind & Fire, meio Sonny Rollins alike, o hiato da percussão, a transição para um curto low-burn, o lento esmorecer do palpitar da faixa. Há ponderação, há sensibilidade, há um sentido aural de craftsmanship muito próprio sob a composição. As partes, e tantas que são, camadas e carradas delas, dialogam, brincam, tropeçam umas nas outras, largam gargalhadas. É tudo ingénuo, é tudo falível. Acima de tudo, soa a liberdade. Assimétrico, espontâneo, fragmentário. Molda-se uma ideia à outra, e a outra vez, e as duas primeiras vão buscá-la por esticão; é um idioma seu, cinematográfico, ondulando por impulso. Lá tem ouvido para a coisa. Deve ser isto o que isso quer dizer.
Quem diria que é original, não? Quem diria que roubar do próximo resultasse assim, não? E, mal deu conta de si, Shadow tinha infundamentado quaisquer filosofias de autor, e assim, em claro paradoxo, criado uma mais figura autoral: a desse que, feito artesão, operou Endtroducing.