
Querem bem à arte, não tragam nunca serenidade a quem a faz; um canalha de um psicoterapeuta apaziguou Springsteen nos anos 90 e nunca mais o patrão conseguiu fazer um disco decente. Querem bem à arte, lixem o artista. Alimentem-no com dor, raiva, culpa e confusão. Só assim a grande obra nascerá.
Para bem da humanidade, os fantasmas de Bruce estavam mais sacanas do que nunca em 1982. Pouco importava que público e crítica bajulassem o seu menino – na vida real sentia-se um perfeito falhado, um lobo solitário que logo mordia a quem se aproximasse demais. Como o seu pai.
Bruce afirmou um dia que não fora a relação difícil que tivera desde pequeno com o senhor Douglas Springsteen não teria escrito uma única canção. No passado, a mágoa inspiradora vinha-lhe do pai-figura-de-autoridade, o homem duro que nunca conseguiu aceitar as sucessivas desfeitas do seu filho varão (abandono do colégio católico, cabelos compridos “à menina” e o “deboche do rock’n’roll” são alguns dos seus imperdoáveis crimes). Agora via-o no entanto a outra luz. Era o seu isolamento que mais o perturbava. Bruce não se lembra de um único amigo do seu pai alguma vez ter ido lá a casa. Era solitário quando trabalhava no duro, com o colarinho azul sempre ensopado em suor; e solitário continuava a sê-lo nos longos intervalos em que não encontrava emprego, sentado na cozinha, bebendo cerveja para matar o tempo em demasia. Na solidão do seu pai – pintada pela aguarela esborratada das suas recordações de infância – Bruce via o seu próprio reflexo. Tinha acabado de descobrir o tema de Nebraska. A sua obra-prima.
Foi neste estado de espírito, nostálgico e pessimista, que as novas canções foram aparecendo. Eram na mesma retratos do operariado americano mas agora com uma importante nuance: se as personagens de Born to Run, Darkness in the Edge of Town e The River encontram a salvação na luta épica do dia-a-dia, os protagonistas de Nebraska estão já irremediavelmente perdidos. Já não têm lugar como pessoas, são apenas desperdícios de uma engrenagem gigante e desumana. Afogados em “dívidas que nenhum homem honesto conseguiria pagar”, e com todos os seus sonhos traídos, nenhuma esperança lhes alumia o fundo do túnel. Só uma personagem em Nebraska encontra a salvação: Johnny 99, que depois da fábrica de automóveis onde trabalhava ter fechado, bebe em demasia, acabando por matar – desvairado – um pobre inocente. A sentença é “98 anos de prisão mais um” mas Johnny 99 não aceita como preço para o seu pecado nada abaixo da condenação à morte. Quando a única via para a redenção é a cadeira eléctrica, está tudo dito sobre a amargura de Nebraska.
O curioso foi a forma acidental como a melancolia das canções foi captada em fita. Quando Bruce gravou pouco mais do que voz, viola e harmónica num rude gravador de quatro pistas, os temas não passavam de demos, o tosco ponto de partida a partir do qual a sua banda encetaria então todo um paciente trabalho de tapeçaria musical. Qual não foi então o seu espanto quando viu as suas canções esboroarem-se nas mãos carniceiras da E Street Band: os detalhes das letras perdiam-se à mais leve amplificação, a sua mágoa ficava soterrada por debaixo da parafernália de instrumentos, a intimidade desaparecia com tanta gente em redor. Springsteen acabou por desistir, optando por publicar as demos. Sem ter sido programado, o tom lo-fi e sombrio da cassete original ajustava-se como uma luva ao desencanto dos temas. Graças a este feliz acaso, o disco tem a atmosfera intimista de quem nos conta uma história triste à volta da fogueira. Segredos revelados na noite escura por entre a lenha a crepitar.
Não conhecíamos esta voz lúgubre e delicada em Springsteen. Sempre nos habituámos ao seu exacto contrário, ao tom épico de “Born to Run”, os hinos grandiosos aos homens simples que ardem para fugir da escuridão. Pela sua inesperada contenção, Nebraska é o único disco que convence até os seus habituais detractores (os hereges que acham o “Springsteen-padrão” um histriónico com testosterona a mais). A sobriedade de Nebraska tem outra vantagem: não gera mal-entendidos. Enquanto o ouvinte mais distraído facilmente toma a ambiência heróica de “Born in the USA” como uma apologia patrioteira, nem mesmo o mais pateta dos republicanos se revê na óbvia acidez de “Johnny 99”.
Springsteen não se apercebeu logo das implicações políticas do seu novo álbum. Pelo contrário, via Nebraska como o mais pessoal dos seus discos – pai, infância e solidão espreitando a cada verso. Só quando a crítica especializada junta os pontos – ligando no mesmo traçado a ascensão de Reagan, o aumento das desigualdades, as comunidades fragmentadas por um feroz individualismo e Nebraska – é que Bruce toma consciência de que o seu disco mais pessoal é também o mais político. O mesmo tema une afinal os dois níveis: os malefícios do isolamento. Quando as pessoas são apartadas do seu lugar na comunidade ficam à deriva, sem amparo nem referências, entrando numa zona perigosa onde tudo é permitido porque já não há nada a perder. A condenação é então inevitável.
Marxismo em Bruce só se for o dos irmãos Marx. O “patrão” ganhou consciência social de forma bem mais prosaica, ouvindo os seus amados Animals gritarem “We Gotta Get Out of This Place”. As suas memórias de meninice – todo um tratado sobre o que é isso de se crescer pobre numa small town americana” – fizeram o resto da sua educação política. Em “Mansion On the Hill” e “Used Cars”, ambas vistas sob a perspectiva de uma criança, Bruce fala-nos da vergonha de se ter pouco e do sentimento de inferioridade em relação a quem tem muito: “Now mister the day the lottery I win / I ain’t ever gonna ride in no used car again”. Cem ensaios marxistas dizem menos sobre a condição proletária do que este refrão.
Springsteen, velhaco, dispõe falsos brilhos nas suas canções para no momento certo nos tirar o tapete. Em “Highway Patrolman”, as recordações longínquas dos bons momentos passados com o irmão amargam ainda mais os seus caminhos entretanto conflituantes: o irmão-polícia perseguindo o irmão-criminoso, com todos os dilemas de lealdade daí decorrentes. Em “My Father’s House”, a casa de infância que procura é-nos primeiro apresentada como o santuário protector de todos os males, só mais tarde chegando o balde de água fria: “I told her my story and who I’d come for / She said «I’m sorry son but no one by that name lives here anymore»”. A alegoria não deixa margem para dúvidas: por muito que Bruce o deseje, o seu doloroso passado não poderá nunca ser alterado.
No mais desesperançado dos seus álbuns, surge porém um aparente statement de esperança:”Reasons to Believe”. Mas mais uma vez as aparências enganam. A mãe que baptiza no rio o filho morto; a mulher que, incapaz de admitir que o seu homem a abandonou, espera todas as noites pelo seu regresso; o homem que depois de atropelar um cão abana o cadáver vezes sem conta, na expectativa insana que este volte à vida – todos são movidos pela mesma fé cega e desesperada dos que não querem ver.
É com este último murro no estômago que termina Nebraska. Temos razões para acreditar que amanhã será outro dia.