Estava Walter Benjamin posto em sossego, sonhando com Rosemarys impossíveis no seu exílio em Londres, quando se dá conta que ao longe a sua pátria se esboroa, usada, descartada, vilipendiada, vendida por um par de sapatilhas e um pires de amendoins, que a nossa elite não gosta de ser pedinchona. Era urgente regressar, atirar o estrangeirado Walter pela janela, renascer no mais consentâneo Benjamim, escritor de canções que sabe o que é mandar à merda na língua de Pessoa. Auto Rádio é isso, uma declaração de amor à pátria ferida, revelada em mil pormenores, desde a escolha da língua-mãe até aos temas só nossos (como o trauma da guerra colonial e a queda do império), passando pelo tributo assumido a alguns músicos portugueses, e desembocando no próprio conceito que une o disco: a ideia de uma viagem pelas estradas nacionais empoeiradas, numa provecta carrinha que já conheceu melhores dias, sempre ao sabor do fiel botão do rádio, a banda-sonora do Portugal multifacetado do século XXI.
The Imaginary Life of Rosemary and Me podia ser um álbum quase irrepreensível mas tinha um defeito: era demasiado perfeito, não corria riscos. Auto Rádio é mais arrojado: sai da estrada principal, enfia-se pelos carreiros, vira à esquerda e à direita ao mesmo tempo, não hesita em pisar a linha (sempre moralista) que separa o bom do mau gosto (e a alta da baixa cultura), não tanto por auto-ironia mas sobretudo por uma imensa ternura a tudo o que é autenticamente nosso. Por tudo isto, Auto Rádio é um disco mais denso e vital do que o seu antecessor.
Que bem que sabe nos refastelarmos na vetusta Volkswagen de Benjamim, ouvindo pelo rádio o Fausto a jogar bilhar com o Marco Paulo e o Zeca Afonso a apalpar as mamas à Lena d´Água (o atrevido). Porque se há uma ideia que define Auto Rádio é a de que não se pode ser português só pela metade. É preciso amar com a mesma intensidade as casas do Siza e as varandas fechadas a alumínio, os discos do Carlos Paredes e as cassetes do Quim Barreiros nas bancas das feiras, os filmes do Pedro Costa e o Eládio Clímaco no festival da canção, os livros do Gonçalo M. Tavares e as gajas nuas no Correio da Manhã, as esculturas de João Cutileiro e os piços não tão estilizados dos bonecos das Caldas. Tudo isto é Portugal, tudo isto existe, tudo isto é fado.
Por outro lado, queria fazer um sincero apelo aos mais alérgicos ao kitsch: não se precipitem.
Primeiro, porque se há um descarado piscar de olhos a Lena d’Água em “Volkswagen”, e uns coros assumidamente manhosos em “Tarrafal”, Benjamim, traído pela sua própria sofisticação, nunca consegue levar o mau gosto pretendido até às suas últimas consequências. Benjamim quer pôr “Tarrafal” a soar a Marco Paulo; o máximo que consegue é dar-lhe uns pozinhos de Duo Ouro Negro. Perdoa-me, Luís Nunes, mas és uma menina.
Segundo, porque grande parte do disco vai dialogar com referências portuguesas bem mais requintadas: “Auto Rádio” é Foge Foge Bandido em overdose de barbitúricos; “Sintoniza” é Bruno Pernadas caído num caldeirão de anfetaminas; “Meteorologia” é Noiserv com uma moca induzida por um desgosto amoroso.
Merece um parágrafo à parte a conversa entabulada entre Auto Rádio e a Música Popular Portuguesa (MPP). A homenagem é directa na lindíssima “Rosie”, uma canção bem velhinha do Fausto aqui cantada pelo próprio A. P. Braga (um ícone esquecido da canção de intervenção, que escreveu este tema a meias com o Fausto); e surge mais disfarçada em “O Sangue”, original de Benjamim mas inspirada no génio melódico do Zeca. Nos últimos anos, foram muitos os nomes que também foram beber a este filão. Se a primeira geração do rock português, a que explodiu nos anos oitenta, conquistou a sua identidade declarando guerra à MPP (trocando os timbres acústicos pela electricidade e enfiando a sociedade de consumo pós-moderna pelo marxismo de naftalina acima), o rock contemporâneo já não tem vergonha em reclamar para si este legado. Ainda bem.
Impuro mas belo, é esse o segredo escondido de Auto-Rádio. Quando o apolítico se torna empenhado, quando o exilado regressa a casa, quando o estrangeirado volta a falar português – com a língua, com a cabeça, com o coração, com os pés-, o melhor álbum nacional de 2015 acontece. Disco bonito, pá.