Se Bernardo Fachada queria ser o Zappa português, há muito que o almejado está para lá do concretizado.
Se inicialmente cantava pelos moldes de Godinho e outros da estirpe de Abril, tem hoje identidade e linguagem muito própria, um mundo sónico e lírico que lhe pertence unicamente a si. O fabuloso neste cantautor lisboeta está na negação da estagnação e conformismo tipicamente associadas à descoberta por parte de uma banda ou músico de um ‘estilo’, de algo único que o distinga imediatamente de outros: B Fachada é camaleónico, os seus passos imprevisíveis. Da pop 80s via “afroxulas” (isto existe), passando pelos arranhares e dedilhados da braguesa que revitalizou, aos experimentalismos bizarros ou a hinos anti-regime de 20 minutos, de álbuns supostamente designados para um público infanto-juvenil até ao uso de samples para monstros pop de 6 minutos com 3 refrões, Fachada é dos artistas mais multi-facetados da história da música portuguesa. E isto tudo polvilhado de letras hilariantes, de sarcasmo corrosivo e ironia poética? Realmente, faz lembrar alguém.
Mas recuemos até 2011 e ouçamos novamente um extraterrestre entre os álbuns de Fachada: o seu segundo homónimo, o “álbum roxo”, “aquele que tem a cara do gajo na capa”.
Tio B sentou-se ao piano – à excepção da primeira e última canção – e dele extraiu as melodias mais singulares e marcantes da sua carreira até ao momento. Casulos tornados canções, música que de tão pouco faz tanto; com três ou quatro elementos, B dá-nos mundos de textura e razões para repetirmos as suas 8 pérolas incessantemente. Uma produção meticulosa, não obstante soando feita sem o mínimo esforço, idiossincrática no encaixe dos vocais de acompanhamento proporcionados pelo cantautor (todo o álbum é por ele tocado e cantado), nos sintetizadores planantes e doces que oferecem dimensão às faixas, na forma incomum mas cativante como trata a sua voz (ouça-se “Barriga Pelo Amigo”).
Da sua pena verte o amor, o desamor, a vida na estrada, a pequenês/grandeza do seu ser (depende da faixa), o quotidiano. Sempre astuto, perspicaz, bem-humorado. Continua a ser a única pessoa a ter usado o vocábulo “piça” numa quadra e esta ser das mais românticas já cantadas sobre o compromisso (ouça-se “Não Pratico Habilidades”).
Na primeira faixa infantiliza o mundo rock, talvez cantando a fatiga, desinteresse ou experiência para saber de algo melhor. Acompanha batucando gentilmente na guitarra – essa que “só tocava distorção” – e um solo incomum, notoriamente hábil, a fechar. Entrega-se de corpo e alma aos mantras convidativos de “Roupa de Estrada” e “Barriga Pelo Amigo”, mostra-se gingão e orelhudo nas suas melodias delico-doces em “Está Na Hora da Passa” e “Não Pratico Habilidades” e atmosférico, envolvente, experimental (e de batidas acompanhado) em “Os 2 No Polibã”. Quanto a “Mané-Mané”, é o mais próximo que Bernardo esteve do indie rock, mas o inconformismo sonoro não o permite.
Não desvalorizando a excelência de todas as faixas, uma se destaca como um dos momentos mais extasiantes e impressionantes de todo o cancioneiro de Fachada: “Cantar o Apelo”.
Não importa quão colossal o sistema de som, soa sempre confinada, a necessitar de mais volume. É aquela canção incapaz de se conter, impossivelmente colossal, eternamente expansiva. Pela austeridade dos movimentos no piano, julgá-lo-íamos impossível. Porém para cada acorde há uma onda de tons ametista (tal a capa), avassaladora e de sentimento carregada. Não uma herdeira, mas uma irmã para “Pyramid Song“: só nestas o piano, no seu paciente e certeiro vagar hipnotizante, sensualiza, seduz, romantiza e da sua diferença deixa por terra toda e qualquer indiferença. E a voz de B, único elo entre nós e a atmosfera (que diz não saber cantar), vai-nos convencendo de que sim, é realmente humano quem canta e toca. Comisera, como sempre tanto lhe apraz, e nós de beicinho. O apelo é infinito, mesmo que o couro cabeludo não o seja.
Ouça-se, repita-se, entenda-se o génio destas oito canções.
“Nasce um disco amor para ouvires no teu inverno”.