Memórias confusamente fundidas, ingenuamente coladas, despreocupadamente cortadas, sobrepondo-se, estendendo-se e empurrando-se, contudo coabitando democraticamente um caldo agridoce multicolor: uma descrição apta para o som dos The Avalanches – mimetismo enorme, quase simetria, do que seria descrever o que é relembrar a infância – mas 16 anos depois, ouvindo Wildflower, uma nova luz abate-se sobre o seminal Since I Left You (único álbum anterior da banda, obra-prima de vital influência das plunderphonics – qualquer música que, a partir de uma fracção de áudio gravado ou mais, utilize este(s) para formar uma nova composição), expondo este como uma obra muito diferente do que a imaginávamos.
Afinal, o sentimento de um olhar esbugalhado e maravilhado de Since I Left You não é infanto-juvenil, nem nos remonta para a aura de descoberta e curiosidade próprias de uma criança. Lançado a poucas dias do fim do ano 2000, soa, à luz deste novo Wildflower, à mais épica odisseia de um jovem adulto pelo que seria, à partida, um admirável milénio e mundo novo, aparentemente desprovido de fronteiras tangíveis ou culturais, onde o futuro era profundamente nostálgico e moldado pelo passado, onde as dores de crescimento o eram sem dor, contudo mantendo a mesma apoteose confusa, dispare e hiperactiva associada ao que é crescer em alturas cultural e socialmente rupturantes: até à “terapia” de uma personagem descrita pelos samples da icónica mescla noir/spaguetti western “Frontier Psychiatrist” como “Crazy in the coconut!”, entre outras acusações de instabilidade mental, o disco é atarefado e irrequieto, o “mundo que se descobre todos os dias como novo” (“Since I Left You”, a canção) é repleto por uma aura que, apesar de hiper-melódica, é desamparada e instável. Wildflower contraria isto: é um disco menos confrontacional, directo e vertiginosamente menos dispare do que Since I Left You, ancorado muito mais no júbilo solarengo da pop psicadélica dos 60s e a juvenília gingona do hip hop late 80s. É um álbum incrivelmente bem-disposto, positivo e radiante – muito mais do que o anterior. Tal deita por terra as recentes alegações de muitas críticas recentes ao disco, que injustamente o catalogam como um seguimento do registo anterior. Pelo contrário. Wildflower é a prequela, a infância e adolescência do hiperactivo jovem adulto atribulado de Since I Left You.
É no entanto compreensível concordar com as demais críticas. No primeiro registo, tanto melodias, como batidas ou instrumentos erodem em meros segundos, dando lugar a outros completamente distintos. Os samples ampliam esta atmosfera irrequieta: ouve-se uma voz lembrando-se continuamente que terá de marcar um voo para esta noite (“Flight Tonight)”, outra duvidando se não estamos a ouvir (“Radio”), uma ronronando que esta noite terá que durar o resto da sua vida (“Tonight”), o relinchar de cavalos (“Stay Another Season”). É só depois do culminar esquizofrénico de “Psychiatrist” que Since I Left You se assenta em grooves mais definidos e mais focados, o interesse em criar brilhantes cadáveres esquisitos musicais alterado pela vontade de confeccionar canções mais concisas. É exactamente por este disco ser, à semelhança do último terço do primeiro registo, um álbum de canções, unidas por trechos sonoros sublimemente subtis e texturados, ao invés da suite musical incansável, sem qualquer tipo de paragens, que era Since I Left You, a razão pela qual inúmeras publicações o injustamente classificam como uma continuação ou extensão bem conseguida do álbum anterior.
O surpreendente Wildflower, não obstante ter conseguido revelar novas facetas de um som tão icónico e reconhecível como o dos Avalanches, mantém imutáveis algumas fórmulas que se mantêm tão eficazes e excitantes como o eram há 16 anos atrás. Os samples melódicos, as cordas lustrosas e sonhadoras, as batidas da disco num enamoramento permanente com mecânicas da electrónica, do hip hop, do psicadelismo 60s. A explosão multicolor disco de “Subways” não estará muito longe de “A Different Feeling” do primeiro registo; “Because I’m Me” recaptura a elevação alegre das cordas de “Since I Left You”; é dada continuidade a um punhado de canções com curtas faixas-interlúdio, à semelhança do álbum anterior, e as últimas faixas do disco, como “Kaleidoscope Lovers” ou “Stepkids”, são mais pacientes, amorosas e carinhosas, espelhando sentimentos das antigas “Etoh” ou “Summer Crane”. Nada contra, todo o material novo é equiparável à riqueza sonora de Since I Left You.
Riqueza esta é aprofundada pela adição de convidados e de mais instrumentação convencional: “Colours”, número de pop psicadélica 60s de uma graça tremenda, sem qualquer sample, são os The Avalanches mais extasiados do que nunca, a rendição vocal juvenil e arrastada de Jonathan Donahue pintando uma imagem colorida (lá está) de sereias, verdadeiros amores e brincadeiras ao sol – é das melhores faixas da carreira da banda. O jogo de influências e referências históricas multiplica-se na cómica “Noisy Eater”, o grupo de produtores convidand o influente rapper Biz Markie para se parodiar a si e ao hip hop mais jocoso e primários dos 80s, no qual era figura relevante – não muito diferente das brincadeiras dos Gorillaz ao convidar os De La Soul para “Superfast Jellyfish”. Não é o único paralelismo com sons modernos: “Because I’m Me” soa a algo que Kanye produziria por volta de Late Registration, “If I Was a Folkstar”, com Toro Y Moi, não está muito longe do psicadelismo relaxadamente discreto do projecto de Chaz Bundik.
O positivismo emanado pelo segundo álbum da banda é radiante e altamente compensador, revelando-se progressivamente mais excitante e detalhado o quão mais se mergulha no seu caldeirão fervilhante de colagens sonoras. Do dadaísmo macabramente bem-disposto de faixas como “Live A Lifetime Love” ou “The Wozard of Iz”, cada uma com participações de rappers em estado de graça, aos hinos instantâneos, graças à utilização inteligente dos samples como refrões potentes, de “Harmony”, “Sunshine” e “Frankie Sinatra” (a transição com “My Favorite Things” pressionará pontos de prazer previamente inexplorados para os aficionados do songbook americano), aos interlúdios belíssimos, Wildflower é, após 16 anos de silêncio, uma resposta incrivelmente satisfatória às expectativas massivas que lhes eram postas em cima. Após Since I Left You, julgámos não haver mais espaço para surpresas – o que fazer depois de uma revolução? Em 59:31 minutos, os The Avalanches dão-nos a resposta certa.