Nunca tinha visto tanto cd junto. Estantes e estantes, música por todo o lado, discos de quem mal tinha ouvido falar, todos os que conhecia e centenas de desconhecidos. Jovem candidato a adolescente, sabia que gostava de música, de andar na rua e no carro entre auscultadores e que olhava orgulhoso para a minha pequena Sony, dos seus dois decks, leitor de cd’s independente e equalizador.
Lá por casa andavam os Guns n’ Roses, os Rage Against the Machine, os Metallica e os Doors. Também por lá, os Ugly Kid Joe, o Billy Idol, os Biohazard e mais um ou dois que a memória fez o favor de apagar. Seguramente que por lá andava a cassete do Unplugged do Eric Clapton. O critério era largo e, no mundo em que a partilha era feita em fita, não era fácil descobrir novidades. As bandas novas apareciam com dois ou três discos gravados, ouvir música ocupava espaço e sozinho não se conseguia nada. Era preciso encontrar quem tivesse pago pela música – em vinil, cd ou cassete – ou pelo menos quem tivesse tido acesso ao original.
Lembro-me bem de entrar pela primeira vez numa Fnac, em Madrid, lado a lado com o meu pai – um admirável mundo novo, diria o outro. Imediatamente, a escolha tornou-se no único desafio. Mais rock? Mais guitarras? E se fosse algo fora dos tops? Não me lembro das alternativas, mas sei como resolvi o problema. Decidi que estava na altura de ter um disco de jazz e, hábito que ainda hoje conservo, fui perguntar a quem sabia. “Pai, escolhe lá um cd de jazz normal”
Aqui e ali, normalmente na sala de casa ou no carro dos pais, o som não me era completamente estranho, mas a barreira estava longe de ter sido quebrada. Ao longe, o Jazz não era mais que o som de uns saxofones meio desalinhados, perdidos em ritmos estranhos. Não tinha letra e carregava demasiado silêncio para ficar no ouvido de quem se gabava de gostar de rock pesado. Descobri que lhe chamavam Adolescência e hoje estou grato por ter um prazo de validade bem curto.
Do escaparate, pela mão do pai, veio um best of do Art Blakey and the Jazz Messengers, com um carimbo que os anos me ensinaram a respeitar, o da Blue Note. É verdade que já lá estava a “Blues March” e a “Night in Tunisia”, mas foi a primeira faixa que me agarrou, “Moanin”.
Meia dúzia de notas, simples e bem dispostas, a que se junta o discreto saxofone de Benny Golson e o trompete de Lee Morgan. A apresentação da bateria do cabeça de cartaz serve para assinalar o começo da verdadeira festa.
Nunca tinha ouvido um rufo assim, rápido sem ser estridente e a acabar num prato que nunca conseguimos ouvir estalar – acreditem, já tentei. Descobri depois que lhe chamavam Hard Bop, os senhores que carregaram na força do Bebop e que só travaram um pouco antes dos loucos do Free. Soube depois que a “Moanin” tinha estatuto de standard e que esta tinha sido a melhor banda à disposição de Art Blakey.
Se a introdução é solene, na festa que Blakey instala, rapidamente se percebe que a brincadeira será à vez – nem falta o solo de contrabaixo – e que ninguém se destacará na música em que o ‘capitão’ faz por passar despercebido. O balanço, os solos, a variedade do som e a facilidade com que uma mudança de ritmo transforma um gemido murmurado num estridente momento de algazarra, apresentaram-me o Jazz.
Hoje guardo-o entre os quatro ou cinco discos do Senhor Blakey que entretanto cá vieram parar. Ao lado do Miles e do John, perto do Bird e não muito longe do talentoso McCoy. Hoje, olho para o melhor cartão de visita que conheço ao género, não com a reverência com que oiço o Kind of Blue ou My Favorite Things, mas com um conforto que nenhum outro me provoca. Afinal, foi por ali que descobri que nem toda a música tem de ter guitarra, que a agressividade não tem de envolver agressão e que no carro, em família, até dava para viajar sem auscultadores. Foi ali que descobri, diria o outro se estivesse estado na Fnac em Madrid, um admirável Mundo muito velho.
PS: Este artigo faz parte da blog A Minha Música do site abica.