Banda com nome que dá resultados curiosos quando pesquisado num motor de busca, estes rapazes vêm de uma zona do país abaixo do Tejo, algures no extenso distrito de Setúbal. Não perto da costa e do peixe fresco, mais para o interior, onde o sol queima a valer e as planícies e prados dão cenário ideal para filmes de vaqueiros. É esse, pois, o imaginário que Um Corpo Estranho criam com este novo álbum, Pulso. Mas não é só de calor abrasador e revólveres no coldre que se fala no segundo longa-duração de Pedro Franco e João Mota. Foi ele, vocalista, que conversou connosco e nos falou de inspirações e músicas que lavam a alma.
ALTAMONT: Na música de Um Corpo Estranho, somos surpreendidos pelos instrumentos, banjos e ukuleles, que dão um toque de tradição e faroeste. De onde vem essa vossa vocação para usar tais instrumentos?
JOÃO MOTA: As coisas aconteceram um bocado naturalmente, mas a maior responsabilidade disso é do Pedro Franco, que é o multi-instrumentista do grupo. Essa parte do Portugal tradicional está-nos enraizada, tanto como a música que vem lá de fora, o bluegrass, blues, rock de uma forma geral. E foram instrumentos que nós achámos que, apesar de soarem um bocado fora de contexto no início, quando começámos a escrever canções, tinham uma linguagem própria não só dentro dos estilos habituais. E começámos a explorar e achamos piada à voz e ao sotaque que esses instrumentos trouxeram às canções. E foi por aí. A música toca-se em qualquer ponto geográfico e qualquer instrumento tem uma linguagem em qualquer tipo de música. Hoje em dia vemos muito isso na metamorfose do novo fado e as experiências que se fazem.
Esse toque dos instrumentos tradicionais é equilibrado por uma guitarra eléctrica, meio suja, que me transporta mesmo para o faroeste, cowboys com a barba por fazer.
Sim, faz parte do nosso imaginário também, aquele universo meio Morricone, ver como é que as guitarras soam. E muitas vezes o que acontece é que as canções nascem de uma fórmula simples, uma guitarra, habitualmente nem temos grande preocupação com o som da guitarra quando estamos a compor, e a música acaba por ser toda em torno dessa tal sujidade, dessa guitarra meio carrancuda, meio tosca que fica ali, mas que depois acaba por ser o elemento que agrega os restantes arranjos. E sim, vem um bocado desse rock e desse lado meio western.
O disco tem um ambiente um pouco negro, desolado, como vocês descrevem, cultivam o negro mas sempre em busca da luz.
Nós temos uma questão que é complicada de contornar. Nós escrevemos canções sempre a partir de alguma coisa ou de alguma impressão não tão positiva, e daí esse negro ficar um bocado latente, às vezes um amargo de boca ou azedo, que esteja nas letras ou mesmo na sonoridade. Mas é sempre com a catarse como alvo e como horizonte. Contamos sempre, e é nossa intenção, solucionar esse problema na própria canção. É claro que isto é tudo linguagem metafórica, mas há um bocado esse respeito pelo lado de onde vem a inspiração ou de onde é que surgiu a primeira ideia de um certo tema, e há esse respeito do tratamento do estado de espírito, que talvez não seja tão positivo, mas sempre com a intenção de resolvê-lo no final, ao fim e ao cabo, acabar num dia de sol, a tal calmaria que vem depois da tempestade.
Falaste em catarse. Estas músicas funcionam, efectivamente, para vos resolver problemas?
Nem sempre, muitas das vezes é como uma espécie de retalho de memória que fica ali, também para nos lembrar das coisas menos boas. Mas a intenção é acabar em paz com um estado de espírito nem sempre tão optimista. Mas muitas vezes são impressões do mundo e daquilo que me rodeia, transportadas para um universo do tal Corpo Estranho, que já acaba por ser um agente com vida própria, aquele universo de alegorias que não tem propriamente a ver connosco, mas talvez seja nós a desdobrar-nos numa personagem de ficção. Muitas vezes, esse lado negro é usado como estética e não só como uma coisa imediata daquilo que passamos ou sentimos em relação ao meio circundante.
Nas letras do disco, há vários conceitos fortes. A certa altura falas da “Vertigem”, uma espécie de Ícaro versão 2.0. Sem poder abordar aqui uma a uma, no geral, quais são as temáticas principais que abordas nas tuas letras?
Elas passam por várias fases e por vários pontos geográficos, mais ou menos imaginários. Sempre com um pé no nosso tempo e com outro num passado mais saudosista, ou na nossa percepção de o que é que o ser humano deixou para resolver lá atrás, e possibilidades para o futuro. Então acaba por não ter propriamente um tema, mas recorremos muito ao nosso imaginário colectivo, à mitologia portuguesa e à mitologia em geral. Nesse caso, na “Vertigem”, recorremos ao mito do Ícaro, que achamos interessante. O ser humano vai atrás do sonho, muito mal equipado.
Este disco também pode ser uma boa banda sonora para um filme, tem momentos de suspense, de burlesco, de western, será muito fácil associar imagens a este álbum.
Sim, nós somos muito fãs de cinema, é um universo que nos fascina imenso e achamos que a música também pode vir daí, como um complemento ou como um ponto de origem. E já passámos pela experiência de compor bandas sonoras, não de cinema mas para bailado, e é um exercício completamente diferente do que escrever canções, a música tem de servir o objectivo para passar em cena. E, nesse processo, acabámos por descobrir coisas novas, e que linguagem é que Um Corpo Estranho tem nesse sentido. Neste segundo disco, transparece mais esse tal lado cinematográfico e da música a servir como paisagem.