Lula Pena voltou, e isso é sempre um acontecimento. Com Archivo Pittoresco muda-se um pouco a geografia sonora, mas o destino é sempre o mesmo: um passeio pelo seu mundo.
Já lá vão quase vinte anos. Por essa altura, em 1998, uma nova voz chegava à música portuguesa através de Phados, disco que abraçava de forma muito particular e sem receios a nossa veia musical mais antiga e saliente, fundindo-se com o Brasil e os seus encantos maiores. O disco, lançado pela editora belga Carbon, é hoje um objeto raro. Felizes aqueles que o têm, porque é de uma obra-prima que se trata. Depois, bem mais tarde, surgiu Troubadour, já no ano de 2010, e de novo a voz e a guitarra voltavam a ser, uma vez mais, deslumbrantes. Novo tempo de espera, que a compositora e intérprete parece não ter quaisquer pressas de regressar, até que Archivo Pittoresco acontece, num quase final de janeiro já passado. Misturam-se sons, geografias de sons, misturam-se línguas cantadas e cordas, e parece haver uma consciência cada vez maior que o mundo de Lula Pena não tem fronteiras. Nunca teve, na verdade, mas deixou de ter apenas a outra margem do Atlântico como principal referência, espraiando-se agora, naturalmente, para outras águas, para outras margens.
Parece simples tentar perceber como Lula Pena trabalha. Em primeiro lugar, a guitarra acústica. Dela sairão sempre densas melodias, timbres, ritmos, mostrando-se um instrumento que é de cordas, mas também de percussão. Depois vem a voz, o canto, a estética do canto tão particular em Lula Pena. Finalmente, como produto acabado da junção dos dois primeiros, a torrente hipnótica que deles se produz, os poemas cantados e as canções. Archivo Pittoresco traz-nos treze temas, embora pareçam ser um só. Ou melhor, um longo e bonito desfile de ritmos e línguas (português, castelhano, francês, grego, língua sarda e inglês) que estão umbilicalmente ligados, unos por uma igualmente longa paisagem sonora que se vai expondo aos nossos ouvidos, passeando, (e nós passeando nela), até ao fim da viagem. Há cantigas que abraçam o longínquo tempo inicial das nossas trovas (“Cantiga de Amigo”, do cantor e compositor brasileiro Elomar), outras inscritas em terras do Chile (“Ausencia”, assim mesmo, sem acento, de Violeta Parra), outras ainda que navegam até à Ilha de Marajó, na foz do Amazonas (“Breviário”, texto da ensaísta e professora brasileira Jerusa Pires Ferreira)… Há “tantos barcos a passar” por este Archivo Pitoresco, que nos parece impossível não embarcar num, que é o mesmo que dizer embarcar em todos ao mesmo tempo, e fazer nele (neles) o percurso proposto por Lula Pena. As deambulações, as simetrias, os ângulos da longa travessia fazem-se sem custo algum, fazem-se pelo prazer hipnótico, quase narcótico de canções como “Poema / Poème”, “Pesadelo da História”, “Ojos, Si Quereis Vivir”, “Pes Mou Mia Lexi” ou “A Diosa (No Potho Reposare)”. Todas belíssimas e envolventes.
Como nota final, uma última referência àquela que é, para mim, a canção que mais me toca em toda esta obra, tanto pela melodia dolente e preguiçosa, como sobretudo pelo poema cantado. Refiro-me a “O Ouro e a Madeira”, tema do cantor baiano Ederaldo Gentil, falecido há poucos anos, que bisa neste disco. É o tema mais curto do álbum, e diz-nos coisas tão bonitas como estas: “Não queria ser o dia / Porém o momento / Muito menos ser concerto / Apenas a canção”. Ou ainda que a “Ostra nasce do lodo / Gerando pérolas finas”. Talvez neste versos se vislumbre um pouco do que é Archivo Pittoresco, o terceiro longa duração de Lula Pena, essa artista que se demora no silêncio do tempo até voltar de novo a ser luz e a ser voz.