Já os conhecemos há quase dois anos, já os vimos ao vivo, já escutámos o primeiro álbum. Mas agora eles regressam, com o primeiro trabalho de originais (à venda a partir de 27 de Abril) e foi este o pretexto para ir falar com João Paulo Daniel e João Branco Kyron (na foto, os dois primeiros a contar da esquerda). Quisemos saber tudo, desde o princípio, mergulhámos no universo dos Beautify Junkyards, viajámos no espaço e no tempo, e percebemos um pouco melhor por que são uma banda diferente no panorama nacional.
Altamont: Os Beautify Junkyards nasceram dos Hipnótica. Como foi esse processo de metamorfose?
João Branco Kyron (JBK) : Não foi nada planeado. Houve dois elementos dos Hipnótica que emigraram e nós a certa altura estávamos a repensar um bocado o que queríamos fazer sem eles cá, e resolvemos começar a fazer outras coisas, entre elas começar a tocar algumas versões de algumas músicas que tínhamos recolhido e de que gostávamos. E a partir daí começámos a gravar umas coisas, em vários locais, e a coisa foi tomando forma. E essas gravações depois foram dar origem a uma banda nova. A maioria da malta vem dos Hipnótica, temos dois elementos que entraram já na fase Beautify, o João Moreira e a Rita Vian.
Portanto não houve uma intenção deliberada de fazer outra banda.
João Paulo Daniel (JPD): Também se sentia que o que estávamos a pretender fazer, com Hipnótica ou com outro nome qualquer, já não cabia bem no universo que estava definido.
E este registo mais acústico folk foi-vos saindo naturalmente ou houve intenção de direccionar para aquele tipo de música?
JBK: Houve uma intenção de começarmos a gravar algumas versões, em espaços abertos, o que logo à partida também limitava muito o que podíamos usar. Tanto em termos de percussão como em termos melódicos tínhamos de usar instrumentos que fossem tocáveis e transportáveis e audíveis em vários sítios. E então começaram a sair numa abordagem mais despida, mais junto da essência dos originais, começámos a interessar-nos mesmo por isso, por resgatar esses timbres, os sons que não os nossos entrarem na gravação, e começamos a ficar entusiasmados com o resultado. Algumas músicas que nós gravámos, originalmente não eram músicas folk, como os Kraftwerk ou os Mutantes, mas que acabaram por entrar também nessa onda e nesse registo porque eram os meios que nós tínhamos. Estávamos também um bocado cansados de sobrecarregar, estruturas muito complexas, muitas camadas de teclados, harpa, guitarras. Acabou por ser um contraponto.
Mais do que decidirem fazer este ou aquele tipo de música, houve uma necessidade de parar e largar essas camadas todas, ir para um ambiente rústico…
JBK: E de assumirmos algo mais descomprometido. A ideia… Os Beautify surgem depois de já estar tudo gravado, tínhamos um álbum e tínhamos de dar um nome, foi mais nessa óptica. Foi uma necessidade nossa, precisávamos de uma limpeza.
Precisavam de sair do ruído da cidade.
JBK: E da própria estética e estruturas.
JPD: Até do universo que anda à volta daquilo que se fazia em Hipnótica, mais complexo e mais pop. Aproximar-nos de um universo que vai para além da música.
E nesse ‘retiro’ entraram mesmo em contacto na natureza, andaram de roulote a percorrer vários sítios?
JBK: Nós focámo-nos em dois espaços onde temos acesso fácil, um no Alentejo, na casa de um de nós, e uma quinta em Sintra, que é de um amigo nosso. Isto porque, apesar de estarmos no campo, precisávamos de alguma proximidade, para poder ligar o estúdio móvel. E essa proximidade foi estender um cabo com 200 metros até uma clareira onde gravámos parte das músicas. Depois em Sintra, era uma quinta, fizemos uma abordagem parecida, montámos o “set up” numa zona de árvores, que tinha uma espécie de um tanque em cimento, e gravámos non stop aí. Entre estes dois momentos passaram alguns meses. No Alentejo gravámos 6 músicas e tinha resultado tão bem e tínhamos que continuar, e andámos a pesquisar mais músicas, mesmo numa de mergulhar em determinados universos que nos interessavam.
E acredito que esses sítios tenham tido influência na gravação, pelo menos na forma de tocarem.
JPD: Sim, claro. No Alentejo era uma clareira, só com árvores à volta. Apesar dos arranjos já irem feitos, isso influencia a interpretação.
JBK: E eu até usei alguns dos microfones que nós tínhamos, apontei-os para fora, para captar o ambiente, e usei isso nas misturas, faz parte da música.
E desde início escolheram este caminho, uma folk pastoral, que não é muito comum na música portuguesa, não conheço muitas bandas nacionais a pegar nessa inspiração.
JBK: Neste momento não. Mas já houve bandas no passado que se inspiraram na folk dos Fairport Convention, tipo Banda do Casaco. Nessa época, final dos anos 70, houve alguma inspiração na folk britânica, mas neste momento não. E de certa forma consegue-se perceber, a malta está nas cidades e é bombardeada com um contexto musical e cultural muito moldado e muito próximo entre si. E vão-se formando células criativas de bandas que vão estabelecendo afinidade, e a nossa ideia é mais desprendida, a nossa ideia é mais pelo gosto de pesquisar certas raízes e depois transfigurá-las e adaptá-las. E obviamente que a nossa música é contaminada pela cidade, tu ouves o novo álbum e tens lá electrónica e ritmos electrónicos, mas a questão fundamental não é essa, a questão fundamental é tu desprenderes-te de um circuito reinante que é um bocado asfixiante a certo ponto, e acho que é por aí que nós temos cada vez mais de subverter isso, porque é preciso pluralidade e há muita tendência para a malta se encaixar. É quase como a roupa, tu olhas para o lado e escolhes qual é o grupo visual a que queres pertencer…
Aí pelo meio, vocês já tinham definido a vossa estética. Quando é que decidiram passar dos ‘covers’ aos originais, concretamente, este novo disco?
JPD: Antes disso fizemos a versão do Zeca, que não está neste álbum, nem no primeiro.
JBK: Deve sair numa compilação da RDP, com bandas novas a reinterpretar clássicos. Lá está, nós começámos a tocar o tema do Zeca Afonso na tal procura… nós começámos a interessar-nos por outras coisas que não meramente a música, e certas correntes que olham para o passado, mas não num sentido de nostalgia, mas num sentido até de transformar o próprio passado, e moldá-lo, que é uma coisa que aparentemente não é possível, mas se pensares bem, é perfeitamente possível, tu fazes o que quiseres com o tempo. O Presente traz o Passado todo, arrastado, e tu podes olhar para o Passado e interpretá-lo à tua maneira, subvertê-lo, e há muitas correntes – na pintura, na música, etc – que fazem um bocado isso, evocam “fantasmas” do passado e transfiguram-nos, colorem coisas que eram a perto e branco, olham para aquelas experimentações ‘sci fy’ da electrónica e reimaginam como é que os gajos estavam a produzir aquilo e como é que eles encaravam o futuro. E há aqui um jogo de interacções entre a malta do passado, a ver como é que seria o futuro e a imaginá-lo – que eram os primeiros filmes de ‘sci fy’ e aquelas bandas sonoras com filtros e ‘tapes’ – e é a malta do presente a olhar para o passado e a ver “epá, estes gajos andaram a fazer isto desta maneira, mas se calhar não foi”, tu idealizas.
JPD: Mas é olhar para o passado como se não houvesse esta distância temporal. Imagina que não há Tempo, há a ideia só, que as ideias do passado fazem parte das tuas memórias – que estão presentes também e confluem com as ideias contemporâneas – olhar para o passado que te interessa e perceber como é que ele está a moldar aquilo que estás a fazer no presente, fazendo parte dele. Não é olhar para o passado de forma saudosista, é vivê-lo!
JBK: E tudo isso também porque nós começámos também a ler coisas sobre o passado recente de Portugal. E começaram a sair uns livros, o “Portugal Eléctrico” que retrata uma faceta da música portuguesa que aparentemente pouco se conhece, e começámos a ler outras coisas, onde é que andava o pessoal pré-25 de Abril, onde é que se reuniam, qual era a ebulição que havia, como é que tinham contacto com as coisas que vinham de fora, o que é que produziam? E começámos a ver uns documentários, sobre os anos 60 e 70 em Portugal, habitação em Lisboa, transporte em Lisboa, anúncios de televisão. E começámos a fazer a ponte desse tipo de referências com as referências que andávamos a pesquisar em Inglaterra, Public Information Films, coisas de 30 segundos, a preto e branco, e que tinham sempre bandas sonoras do caraças. E nessa pesquisa das coisas portuguesas fomos cavar um bocado o arquivo do Zeca Afonso, que é muito mais rico que a faceta da intervenção, e começámos a ter a ideia de tocar um tema dele ao vivo, que ficou uma coisa intensa. E gravámos, antes de começar a trabalhar este novo disco.
E neste novo disco, há alguns momentos que me lembram fados de Coimbra, umas certas guitarradas acústicas. Portanto, além da inspiração estrangeira, também há no álbum inspiração em música portuguesa?
JPD: Se calhar são as memórias apagadas, ou semi apagadas, que começam a pairar. Há muitas sonoridades que podemos dizer que são portuguesas. Não são só daí, dos fados de Coimbra.
JBK: Mas não foi muito premeditado. Até porque o processo criativo começou com sessões de improviso, a gravar centenas de pequenos trechos, sem compromisso. Depois houve audições daquilo, discussão, muita discussão.
JPD: Ao longo das sessões de gravação, o som foi mudando. Alguns sons que eram mais importantes passaram mais para trás, algumas sonoridades mais portuguesas que não estavam presentes inicialmente.. Não é premeditado mas houve uma transformação estética, desde que começámos a compor até à fase final de gravação.
JBK: Sim, porque o material também era um bocado díspar, eram improvisos. Quando escolhemos as músicas tivemos um processo mais demorado que no disco anterior, foi mais gradual, deixámos a coisa respirar. Houve muitas partes que fomos fazendo e depois recuámos, havia músicas em que estávamos a complicar a estrutura ou o arranjo, demos alguns passos atrás e simplificámos. Tivemos mais tempo, no fundo fomos nós que definimos a nossa agenda. E acho que foi benéfico haver um período de respiração, entre as bases e o detalhar aquilo, porque permitiu-nos depois olhar para as bases com outro ângulo. Foi muito diferente do primeiro disco, mas foi um processo interessante também. Podemos experimentar muitas soluções, temos estúdios caseiros e vamos trocando ideias, enviamos de uns para os outros, vamos acrescentando coisas.
É um processo bastante fluído.
JBK: Permite experimentar várias soluções, não ficar logo com a primeira. O que é bom por um lado, por outro pode estender o tempo, nunca estás satisfeito, pode sempre ficar melhor. E nós temos tendência para gostar sempre da última solução para cada música, porque é fresca. Mas é preciso duvidar um bocado das coisas recentes, nós chamamos a isso o ‘teste do dia seguinte’.
Sobre o nome da banda. Decidiram já depois de terem trabalhado um conjunto de canções, portanto o nome Beautify Junkyards tem a ver com a música que fazem?
JBK: É um nome alegórico, não é nada literal, tal como o nome do novo álbum – The Beast Shouted Love – são alegorias, são imagens que nos interessam porque têm mil e uma interpretações e interessa-nos isso, abrir.
E no disco há uma mistura de temas cantados em português e em inglês, por que é que decidiram misturar? Há certas ideias que se expressam melhor numa ou noutra?
JBK: Não há nenhuma fórmula. Neste caso específico, duas delas logo nas sessões de improviso iniciais surgiram com… Nós normalmente construímos as melodias com frases sem nexo absolutamente nenhum, mas já numa determinada língua. É um vocabulário nosso de criação, mas constrói melodias, e duas delas surgiram logo com frases em português e nós não temos nenhuma restrição, e acho que acaba por ser interessante e por enriquecer o discurso, porque determinadas frases que em português nos soam bem em termos melódicos, se calhar se eu transportasse letras em inglês para essas frases ia perder um bocado o flutuar, e vice versa.
Daí nós termos optado por preservar a ideia inicial. O Tom Waits diz uma coisa tipo “eu às vezes tenho ideias para músicas geniais, e essas ideias é como se eu tentasse transportar nas duas mãos e vou a correr para o estúdio, a tentar chegar lá ainda com alguma água nas mãos”. Eu muitas vezes chego lá e já não tenho água nenhuma, porque a ideia inicial transformou-se tanto que é outra coisa. Mas neste caso, conseguimos preservar muitas ideias iniciais. Outras, acabaram outro líquido qualquer, fomos por outros caminhos.
E esses outros caminhos são nesta estética folk ou vão para outras paisagens?
JBK: Quando começámos a definir o leque de músicas começámos a descobrir afinidades entre elas. Fomos é buscar outro tipo de elementos que se calhar não tínhamos explorado no primeiro disco. Temos presença de mais teclados, texturas, loops construídos a partir de samplagem de sons, coisas de filmes, pesquisar e samplar sons, várias referências e várias linguagens.
JPD: Tem muito mais camadas do que o álbum anterior.
Ainda sobre o título, já disseste que é alegórico, mas foi escolhido por inspiração de algumas canções do disco, reúne alguns elementos comuns às músicas?
JBK: Se calhar não, o título transmite uma ideia daquilo que falávamos ao início, há demasiado ruído e por isso acho que se está a perder um bocado a percepção de que tu podes ir ainda a muitos sítios desse ruído e ir buscar coisas que são refrescantes e interessantes. O que é que eu quero dizer com isto? Por exemplo, tu podes ir ao Youtube, que é um caos, mas neste momento já é uma memória colectiva quase da humanidade, e hoje em dia através do Youtube tens acesso a músicas e actuações de bandas que tu ouvias falar e lias em revistas, há uns anos, e que nunca os tinhas visto, não sabias como é que eles eram. E documentários. Documentários de malta a pesquisar a folk americana, a música electrónica na Alemanha…
JPD: É aquilo que falávamos há bocado do tempo. Estas tecnologias permitem-nos desligar do tempo e ter acesso a tudo, recuar até onde quisermos e entrar nesse mundo.
JBK: E é esse paradoxo que eu acho que é estimulante. Ao mesmo tempo em que a tecnologia está numa velocidade vertiginosa e tu parece que estás a ser empurrado para o futuro e não sabes muito bem para onde estás a a ir, nós estamos completamente perdidos e a tentar assimilar os efeitos da tecnologia no nosso dia a dia e estamos a reagir a ela, e ao mesmo tempo tens um acesso ao passado como nunca tiveste antes. E isso está a transformar o presente, porque está a enriquecer a forma como tu podes abordar o passado, porque se tu te interessares por um determinado assunto, além de livros, tens mil e um meios de chegar lá.
E é um bocado isso, no meio deste ruído, que muita gente considera uma coisa maléfica – estamos a ficar escravos das máquinas, aqueles conceitos do início dos anos 2000s, e que os próprios Hipnótica também exploravam, uma coisa ‘sci fy’ – isto não é nada ‘sci fy’, isto é mesmo assim e é bastante rico. O que eu acho é que falta as pessoas saírem de determinados túneis, porque as pessoas entram num certo túnel ou grupo e depois começam a ficar demasiado condicionadas por isso, em termos musicais e não só, e começam a interagir nesse pequeno núcleo, então vão-se formando núcleos quase de mundos paralelos – é o meu grupo de amigos do Instagram, o meu grupo disto, o meu grupo daquilo – e as pessoas tendem a fechar-se um bocado por pequenos grupinhos e ficam pouco receptivas a ir procurar fora disso, sentem-se na zona de conforto, têm as coisas que gostam e que as estimulam, mas é preciso romper com isso e ligar os túneis, senão isto tudo tende a definhar, isto é um organismo. E em termos de criatividade tu tens de manter a ebulição, e a ebulição faz-se com subversões do que é expectável, portanto é romper, é pegar em vários grupos que não se cruzam e estabeleceres uma rota, passar por lá com músicas folk e melodias, e depois o pessoal fica tipo “o que é que aconteceu aqui?” e de repente vêm uma porta, “epá, mas tava aqui uma porta? Sim tava aqui uma porta. E esta porta dá para onde? Eish, é do caraças esta sala”. Isto é o amor, a amor faz isso, estimula-te. E a alegoria vem daí, isto no fundo é quase uma lenda que se constrói, são pequenas histórias, mas não há nenhum tema do disco que aborde isto. Isto tu pensas depois, a tentar perceber o que é que aconteceu.
E também é curioso que tanto o nome do disco como o nome da banda são paradoxos – Beautify Junkyards, beleza e sujeira; Beast Shouted Love, é pouco habital os monstros gritarem amor. Isto foi propositado?
JBK: Foi por acaso. Nós tínhamos vários títulos que fomos pensando, mas depois.. não foi propositado a escolha final. Mas é curioso.
E ao vivo, já têm planos?
JBK: Vamos fazer o primeiro concerto esta 6a feira [24 Abril], no Mercado de Música Independente, no Príncipe Real, tocamos com o Alisdair Roberts e com o Tó Trips. Depois o lançamento mesmo do álbum é a 22 de Maio na Casa Independente.
Já começaram a preparar a versão ao vivo?
JBK: É o que vamos fazer agora, vamos agora para um ensaio. Nós como somos 6 temos hipótese de recriar o disco, mas também não estamos a tentar fazer isso, estamos a construir alguns arranjos por forma a prolongar algumas partes e deixar as canções desenvolver-se. Grande parte das músicas são algo curtas e queremos estender um pouco mais.