Um par de notas prévias antes de me atirar de alma e coração para as linhas abaixo plasmadas: o Frederico desafiou-me para mandar umas bojardas por estes lados e a minha única condição foi a de que os textos seriam sempre informativos, certo, mas acima de tudo iriam puxar por tudo o que não é jornalismo convencional: teriam muita adjetivação, criação, espontaneidade, parcialidade. Tudo aquilo a que estou habituado no horário de expediente (seja lá o que isso for no jornalismo), tudo aquilo que não quero ter quando escrevo sobre a minha melomania e aquela coisa que há mais anos me enche/atormenta (não riscar nenhum, ambos interessam) a alma: a música, a clave de sol, as canções, pois claro. Segundo ponto prévio: os Suede são a banda da minha vida, não editavam um álbum de originais há 11 (11, foda-se!) anos, acabaram, pensava eu, para sempre, e voltaram para novamente (spoiler: com um disco do caraças!) bombardearem emocionalmente muito bom coração por esse mundo fora. Este texto, é já notório agora, vai consistir num porradão de elogios, algumas lamechices e muita parcialidade. O alerta está dado, e a viagem é, a partir de agora, risco total do leitor.
Cheguei aos Suede em 1997 com “Coming Up”, na altura terceiro álbum de originais, monumento pop formado por dez canções predominantemente soalheiras e imediatas: “Saturday Night”, “Trash” e, sobretudo, “Beautiful Ones” foram temas que muito rodaram nas rádios, cujos telediscos eram frequente presença nos canais dedicados às cantorias e guitarradas (saudades Sol Música). No Reino Unido vivia-se a guerra Blur vs. Oasis, com Suede e Pulp fora do combate mas dentro do ringue: o britpop andava por aí. Na altura a minha aprendizagem musical fazia-se muito através do meu pai e do Blitz enquanto jornal. O meu pai apresentou-me os Beatles, Neil Young, Pentangle, muita coisa boa que fez da minha adolescência e entrada na idade adulta um caso de relativo sucesso a nível de escolhas musicais. Lembro-me que foi o meu pai quem me recomendou a compra do disco homónimo dos Blur, por exemplo, algures nesse 1997, quando o Jumbo de Alfragide (o agora Allegro) tinha uma simpática coleção de discos à venda. Nessa semana tinha saído uma crítica muito abonatória ao disco na Visão, recordo-me também. Adiante, os Suede.
Nesse 1997 comecei a gostar dos Suede mas não foi ainda aí que fui atrás ao começo da banda – isso só veio depois de 1999 e do lançamento de “Head Music”, então quarto álbum do grupo mas que funcionou como real revelação para mim: caramba, gramo desta merda. Vou mais a fundo. Entre 1999 e 2002, data de “A New Morning”, que viria a ser o último álbum antes da paragem, fui-me interiorizando com os Suede. Fui percebendo o contexto em que surgiram, fui-me encantando por “Suede”, de 1993, e especialmente “Dog Man Star”, do ano seguinte – ainda hoje quem me conhece desde essa altura sabe que foi esse o meu mais reconhecível “nickname” no IRC, o Facebook de outros tempos.
Resumidamente, agora falando em 2013, no real e no presente: “Suede” e “Dog Man Star” são discos teatrais, libidinosos, emotivos, à flor da pele. Falam da vida, da perda, do amor, do desamor, do sexo, do contacto, da sedução. Têm muitas cordas, especialmente “Dog Man Star”, e é aí que a história estará para sempre escrita. Na ressaca dos The Smiths e antes da explosão além-fronteiras da britanice alcoolizada dos Oasis, Brett Anderson (voz) e Bernard Butler (guitarra) formaram uma dupla imbatível na criação musical e na pertinência estética e de linguagem: foram reis das palavras, do estilo, da classe. (Um apontamento que importa apontar: entre estes dois álbuns e o que viria a ser o terceiro, “Coming Up”, foi editado um disco duplo (!) formado só por lados-b (!!) desses tempos, lados-b esses na sua esmagadoríssima maioria melhores que os lados-a da maior parte da concorrência.)
Vou acelerar agora: Bernard Butler sai da banda, e é substituído Richard Oakes, antigo fã que entra para tocar com os ídolos aos 17 anos e ainda hoje é um dos grandes, e sai “Coming Up”, a tal porta de entrada para mim nos Suede – nota também para a chegada de Neil Codling à banda (ainda hoje o tipo com mais pinta), teclados que mudaram para sempre o som Suede. Depois há “Head Music”, disco complexo, distante da teatralidade dos primeiros anos mas também da luz pop de “Coming Up”: é um álbum muito eletrónico, com apontamentos étnicos e não totalmente compreendido. É ótimo, contudo. O final deu-se com “A New Morning”, inquestionavelmente o disco menos estimulante, na ressaca de um período conturbado – drogas, perda de noção e realidade, de trajeto pessoal e musical – e já sem Neil Codling no grupo. “Obsessions” e “Beautiful Loser” são excelentes canções mas o todo desiludiu. Os Suede acabaram então.
(Estas linhas foram jornalísticas demais. O autor e o travo emotivo volta já a seguir.)
Em 2010, algo do nada, os Suede regressaram aos concertos. No período de perda, consolidaram o seu lugar no meu coração e na minha prateleira (são a banda de que tenho mais discos, por entre cds e vinis, singles, maxis, bootlegs e K7s). São dos poucos grupos de que tenho a maior parte das letras na ponta da língua. Brett Anderson não foge muito dos mesmos temas, mas quase sempre com uma sagacidade que muito me toca: falo de amor, real, carnal, espiritual. “The 2 of Us”, “Breakdown”, “Animal Lover” (“Your waist is my resting place” é das minhas linhas preferidas de toda a discografia), “Obsessions” (“Obsessions is like sex: is simple and complex”), “The Wild Ones” (“’Cause on you my tattoo will be bleeding and the name will stain”) e mais, muito mais.
Quase mil palavras depois chego a “Bloodsports”, o álbum novo, fresco, fresquinho, o disco que poderia nunca ter visto a luz do dia. Ora vamos lá por partes.
Sabendo de antemão que a história está já escrita para os Suede, restava-me esperar por um disco pop do qual me pudesse orgulhar e cantar um par de temas ao vivo. Não esperava mais e não me sentia na justiça de exigir mais. “Barriers” chegou em janeiro: tema forte, em crescendo, tremenda letra, fala da superação de obstáculos (“We jumped over the barriers”), de arriscar e ser feliz, e é porta de entrada num novo mundo, numa nova vida. Semanas depois chegou o single oficial: “It Starts and Ends With You” é negro na imagem que nos chega pelo teledisco mas transborda luz, sempre apoiado na guitarra tipicamente Suede e, lá está, na voz e letra de Brett. Duas boas pistas para um disco que já dava no tiro de partida toda a sensação de ser uma aposta ganha.
Sem merdas: adoro estes tipos mas até eu temi não me apaixonar por isto. Torço o nariz a regressos de bandas. Tive medo do desconhecido, do futuro, de poder estragar e desvalorizar todas as pérolas artísticas lá atrás. E depois chegaram estas dez canções em 40 minutos, no disco que junta tudo o que os Suede fizeram até ver mas aponta para o hoje e o amanhã. “Snowblind” (que semelhanças com “We Are the Pigs”!), “For The Stangers” e “Hit Me” são temas pop soalheiros e plenos, fortes, ritmados, mas a segunda metade lenta, dolorosa e por vezes agreste transporta-nos para a intensidade e carga dramática dos primeiros tempos – há uma reinterpretação de carreira feita com muita classe e um enormíssimo “estou-me a cagar” para os tempos atuais e novas tendências. Os Suede estiveram no congelador dez anos e voltaram iguais, mas em melhor: melhores letras, mais pujança ao vivo, novas doses de fé e devoção.
“Sabotage”, canção enorme, muito de estúdio, milhas acima da primeira escuta num concerto no verão passado; “Sometimes I Feel I’ll Float Away”, o meu preferido da primeira semana de audições do novo álbum – tudo isto é muito drama, um refrão épico, simples na escrita, profundo na intensidade potenciada por uma guitarra a fugir do resto dos instrumentos e a trazer esta canção para o panteão das imortais; e mais. E muito mais.
Sabem aquelas recomendações personalizadas do YouTube que nos fazem crer que uma página Internet nos conhece melhor que muitas pessoas? É essa a minha relação com os Suede. As letras do Brett são dele, mas são minhas também, e a música que as acompanha é complemento perfeito para uma banda que é como a vida: intensa, dramática, com altos e baixos, acelerada e lenta. Inexplicável – não sei bem explicar porque gosto tanto destes tipos, das canções desta gente, do porquê de tanto me dizerem, mas é, lá está, um bocado como a vida: não sei bem porquê mas gosto desta merda e de estar por cá.