Ninguém percebe como é que isto aconteceu; com o nosso tamanho e tradição, era suposto haver em Portugal cerca de uma banda e meia de rock instrumental em vez do bulício de uma cena (quem já foi ao Festival “Milhões de Festa” em Barcelos – a inesperada capital do “underground” português- sabe do que estou a falar). À parte de um aristocrático desdém que nutrem pela voz humana enquanto meio digno de expressão musical, do gosto comum pela experimentação e da maior propensão ao “síndrome de aquisição compulsiva de pedais de guitarra”, cada uma destas bandas tem um DNA artístico muito próprio: os All Star Project são um pouco os pais da coisa e aqueles que, juntamente com os Riding Pânico, assumem uma postura “post-rock” mais purista; os La La La Ressonance são a vanguarda da cena, com o seu som sofisticado, “jazzy” e minimalista, impróprio para quem vá menos que duas vezes por semana à Cinemateca; os Memória de Peixe são o lado “Pop”, com os seus “riffs” frescos e solarengos como a primeira imperial do primeiro dia de verão; os Black Bombaim são “rockalhada” psicadélica e violenta, que nos dá vontade de assaltar bombas de gasolina com meias coloridas na cabeça; e os outros, os que não cabem no espaço esconso deste texto, têm também todos a sua própria impressão digital – pessoal e intransmissível. E O Quarto Fantasma? Que lugar ocupa este trio de Lisboa na multifacetada cena do rock instrumental tocado em português? Na minha opinião, eles são os pintores de sentimentos por excelência, aqueles que mais longe levam a exploração das possibilidades emocionais da coisa. Não há uma única canção do seu álbum de estreia (A Sombra) que não nos faça vibrar uma qualquer corda emocional aqui dentro. Sentimentos melancólicos, é certo, que A Sombra não é um álbum de fácil digestão emocional. Não há publicidade enganosa no nome: é, de facto, um disco de confronto com o nosso lado mais sombrio, um convite deliberado para dançarmos com os esqueletos escondidos no armário. Não nos orgulhamos daquela nossa raiva cega de animal ferido que vemos espelhada na “Rumores” (uma canção suja e furiosa que faz os Stooges parecerem uma banda de tributo aos Beach Boys). Não confessamos a ninguém que aquele “feeling” apocalíptico da canção “Grande Dúvida” é a banda sonora dos nossos próprios momentos de crise pessoal, quando todos os nossos pilares se parecem desmoronar um a um. Nem tão pouco é traduzível por palavras a nostalgia de “Setenta e um”, que nos transporta para o Éden para sempre perdido da nossa infância… E toda esta efervescência de sentimentos nasce apenas de duas guitarras e de uma bateria (ajudadas, aqui e ali, por teclas, “samples” e algumas palavras). A ausência de um baixista na formação de O Quarto Fantasma é um dos elementos definidores do seu som: por um lado, pela solidão a que vota o baterista J.T., obrigado a carregar sozinho a secção rítmica da banda; por outro, porque este vazio é engenhosamente preenchido pelos registos graves da guitarra de P.D., sempre bem abaixo dos agudos da guitarra de A. G., num jogo de contrastes que torna o seu som mais espesso e interessante. Nos raros momentos em que a voz se intromete neste território feito de instrumentos, a palavra é também pintada em tons escuros e tristes. Mas atenção: ela é quase sempre personagem secundária, ofuscada pela incandescência das guitarras e da bateria. N “A Rumar”, por exemplo, a voz humana bem tenta chamar a si as atenções (“a morte sorri a cada batida do meu coração”, alguém diz); mas quem é, na verdade, incontestável protagonista da canção é aquele “riff” de guitarra persistente e indómito, como os passos de Sísifo carregando, colina acima, um enorme rochedo… Uma única excepção confere legitimidade a esta regra: em “Quem de Mim…” são os instrumentos que se subjugam à voz cristalina da actriz Catarina Rosa; os bonitos versos de Catarina Nunes de Almeida (“Quem de mim se há-de doer aqui tão triste cercada pelos grilos?/ que ninguém me devolva o teu nome é já bastante…”) assim o exigem. Se O Quarto Fantasma é quase sempre avesso às fórmulas que actualmente dominam o rock instrumental, abre uma excepção para a cativante “Arder”, vestindo-a, da cabeça aos pés, com o mais assumido post-rock. A canção é de tal forma bela (enriquecida, em relação à versão em “single” de 2011, com uma segunda melodia tocada pela violinista Maria do Mar) que se lhe perdoam todas as cedências formais. Uma canção obrigatória para qualquer leitor de MP3 que se preze. Mas se as palavras ficam sempre aquém da música que em vão descrevem, mais fútil ainda é tentar fazê-lo neste tipo de música muito avessa às palavras. Esqueçam o blá-blá-blá, ponham o disco a girar e … comovam-se.
O Quarto Fantasma – A Sombra (2013)

Ricardo Romano
"Um bom disco justifica sempre os meios”- defendeu-se Ricardo Romano, ao ser acusado de ter vendido o rim esquerdo da sua tia entrevada para comprar uma edição rara do Led Zeppelin II - o melhor disco de sempre. O juiz não se convenceu, mandando-o para uma prisão com condições desumanas, onde uma vez foi obrigado a ouvir do princípio ao fim um disco dos Creed. Actualmente em liberdade, cumpre pena de trabalho a favor da comunidade no site Altamont mas a proximidade com boas colecções de discos não augura nada de bom.
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