Imaginem um casal de hippies em 1974, prestes a ter um filho. Desiludidos pelos sucessivos baldes de água fria pós-Woodstock, decidem criar a sua criança em isolamento do mundo cão. O miúdo cresce feliz numa quinta no meio de lugar nenhum, educado numa ética hippie e rodeado da mais espectacular colecção de vinys gravados até 1974: do rock psicadélico ao prog rock, do funk ao country rock, do jazz ao folk rock. A partir dessa data nem mais um disco entrou ali. Na quinta não há rádio, televisão ou net, e aquele jovem cresceu profundamente convicto que o mundo acaba na densa floresta que rodeia a quinta. Do que aconteceu depois na música, nunca teve então qualquer conhecimento. Não faz a mínima ideia de o que são o punk e a new wave, o CD e os sintetizadores, a pop electrónica e o grunge. Em 2013 grava um disco num estúdio que montou em casa.
Por mais delirante que seja esta experiência mental, o que é certo é que oferece uma razoável aproximação a alguns aspectos de Fanfare, admirável segundo disco de Jonathan Wilson. Todo o álbum é uma descarada homenagem ao que considera a época de ouro do rock: o período compreendido entre 1967 e 1975 (e o facto do Sgt. Peppers dos Beatles e o Tonight’s the Night de Neil Young terem marcado o início e o fim dessa época parece dar-lhe alguma razão). Em particular, é fascinado pela cena musical de Laurel Canyon, um dos epicentros do movimento hippie na segunda metade dos anos 60, onde residiram nem mais nem menos do que Jim Morrison (a “Love Street” dos Doors mais não era que a florida “Laurel Canyon Boulevard”), Frank Zappa, Joni Mitchell (o seu terceiro disco chama-se, justamente, Ladies of the Canyon), David Crosby, Stephen Stills, Graham Nash, Neil Young (“Our house” dos CSNY era a casa de Graham Nash e Joni Mitchell em Laurel Canyon) e demais malta dos Buffalo Springfield, Byrds, Love e Eagles!
Quando os efeitos do LSD acabaram, e os hippies perceberam que o planeta continuava a ser a mesma bola filha da puta, toda esta florida cena de Laurel Canyon foi definhando, e o seu som caindo no esquecimento (excepção feita talvez a Neil Young, que permaneceu sempre um ícone do folk rock). Até que um miúdo da costa leste, nascido já depois de tudo isto acabar, e não se identificando com o grunge e a pop electrónica que os seus amigos ouviam, se refugia naquele passado mítico, uma nostalgia de um passado anterior a si próprio. Deixa crescer o cabelo, compra uma guitarra em segunda mão, um velho amplificador de válvulas, e não descansa enquanto não saca todos os riffs dos seus heróis da velha guarda. Interessa-se também pelo lado da produção, procurando deslindar todos os segredos da fita analógica, considerando criminosa a epidemia do digital. Aos 19 anos pega numa autocaravana e parte para oeste rumo à Califórnia dos seus sonhos. Estaciona em Laurel Canyon.
Imagino-o desiludido quando chega lá: o idílio hippie que tanto o fez sonhar é agora um bairro pedante, com estrelas de Hollywood em vez de flores. Não interessa: é pôr as mãos à obra e reconstituir o paraíso perdido. Monta um estúdio em casa e convida músicos de várias gerações para jam sessions que rapidamente se tornam célebres (por lá passaram os Black Crowes e Elvis Costello, e quase todos os notáveis que viriam a participar em Fanfare). Produz discos dos gigantes do passado (e.g., Roy Harper, lenda viva do folk inglês) ao mesmo tempo que apadrinha projectos novos revivalistas, produzindo os seus discos (e.g., The Dawes, Father John Misty). E, sempre em torno da sua casa-estúdio, uma comunidade de músicos renasce de novo em Laurel Canyon. Quais são as nossas raízes: aquelas onde nascemos ou as que mais tarde semeamos?
Em 2011 grava, por fim, o seu primeiro álbum: Gentle Spirit. Com ele descobrimos que Wilson não é apenas um brilhante produtor e guitarrista, já para não falar dos seus dotes enquanto congregador de vontades: é também um extraordinário cantor e songwriter. Mas em 2013 sobe a parada com Fanfare. As canções são agora mais elaboradas, tanto na orquestração, como na própria estrutura musical: o esquema rígido verso/refrão/verso de Gentle Spirit é substituído por uma forma mais fluida, em que o tema inicial vai evoluindo para territórios inesperadamente psicadélicos. O mesmo se passa com a produção, mais sofisticada e atenta ao detalhe do que a do disco anterior. Há muito tempo que ninguém dedicava tanto perfeccionismo à produção de um disco: nove meses demora o álbum a ser gravado no seu estúdio caseiro Five Stars, centenas e centenas de horas de um trabalho minucioso e paciente até ao filigrana de sons ser dado como completo. O resultado final atinge um nível de êxtase sonoro muito raro na história do rock, só comparável a discos míticos como Abbey Road e Dark Side of the Moon. É por isso um daqueles discos que, para serem fruídos no seu esplendor, devem ser ouvidos com uns bons headphones. Aconselha-se, contudo, alguma moderação no consumo do disco: a sua textura de sons é tão agradável que, por via da produção anormalmente elevada de endorfinas, o seu organismo poderá ficar fisiologicamente dependente de Fanfare.
Wilson é um multi-instrumentista: para além da guitarra (o instrumento em que é mais virtuoso), o autor de Fanfare toca piano, baixo, bateria, harmónica, mellotron, órgão, percussões e vibrafone. Poderia, se o quisesse, fazer como aqueles génios narcísicos e individualistas (estou-me a lembrar do Prince e do Stevie Wonder) que gravam muitas vezes sozinhos todas as pistas do seu disco. Não é esse o seu espírito. Se há uma palavra-chave que define Jonathan Wilson é, justamente, “comunidade”. É por isso bem vasta a lista de convidados para Fanfare. Começa por convidar três grandes da cena original de Laurel Canyon: David Crosby, Graham Nash e Jackson Browne emprestam as suas harmonias vocais ao disco (percebemos assim melhor onde os Fleet Foxes e os Grizzly Bear foram buscar a sua inspiração). Assim, nem os mais distraídos passarão ao lado do facto de Fanfare ser, antes de mais, um tributo à cena folk rock da Los Angeles dos finais dos anos 60. Mas a lista de convidados teria de ser obrigatoriamente inter-geracional. Quando o folk rock deixou de ser cool, Tom Petty and the Heartbreakers continuaram a pregar no deserto, e Wilson não o esqueceu, convidando dois dos Heartbreakers: Mike Campbell na slide guitar e Benmont Tench no piano. Por fim, fez questão de convidar malta da sua própria geração que, de uma forma ou de outra, continuam essa rica tradição: Taylor Goldsmith (dos Dawes), Father John Misty (antigo baterista dos Fleet Foxes) e Patrick Sansone dos Wilco (responsável pelos arranjos de cordas para o épico de entrada que dá o nome ao álbum).
Sabemos que o exercício de Wilson é perigoso: quando a fasquia (a nível da produção, da orquestração e do calibre dos convidados) é colocada tão alta, o risco das canções não estarem à altura é muito elevado. Wilson caminha na corda bamba da sua ambição: se as canções fossem fraquitas, cairia redondo no chão, vergado pela pompa excessiva e pretensiosa que colocara na produção do disco. Acontece que as canções são extraordinárias pelo que Wilson mantém um perfeito equilíbrio no arame durante os 78 minutos de duração do disco.
Ouvindo “Dear Friend” e “Lovestrong” reconhecemos os riffs de “Any Colour you Like” e “Echoes” dos Pink Floyd. Da mesma forma, “Illumination” e “Future Vision” decalcam descaradamente “Danger Bird” de Neil Young e “#9 Dream” de John Lennon. Qual é o estatuto destes empréstimos? Onde é que acaba a citação e começa o plágio? Há uma característica sua que faz a balança pender para o lado benigno da coisa: Wilson é um notável songwriter e as suas canções não ficam em nada atrás das canções dos ídolos do passado que o inspiraram. Não precisa, portanto, de roubar nada a ninguém para fazer belíssimas canções. Se pede algumas de empréstimo, fá-lo com uma motivação apenas: prestar homenagem aos gigantes que o precederam e o influenciaram, um statement de humildade e gratidão. Por isso não deve haver qualquer dúvida sobre o estatuto destes empréstimos: tratam-se de citações e não de plágios, que só enriquecem o disco.
Da mesma forma, toda a sua produção é uma homenagem à old way of doing it. O disco é gravado exclusivamente com equipamentos analógicos, com material ao seu dispor talvez não muito diferente do que George Martin dispunha para gravar os discos dos Beatles. Se se lhe perguntar porquê, Wilson responderá simplesmente que, quando os dois formatos são comparados, a fita analógica tem sempre um som mais quente e orgânico do que o suporte digital. E Fanfare é prova disso mesmo.
É normal que este disco não dê especialmente nas vistas, que não rode muito nas rádios e que não seja um sucesso de vendas. Nada disto ao acontecer surpreenderá muito Wilson: Fanfare não foi feito para ser o sucesso deste Natal mas sim para que perdure à espuma dos dias. Acredito que daqui a quarenta anos os amantes de música continuarão a ouvir este disco, e esse será o único critério sobre o qual ele deve ser julgado: resistirá ou não resistirá ao teste do tempo? Não sendo astrólogo, não poderei naturalmente ter a certeza da resposta. Sei, contudo, de uma coisa: Fanfare foi o único disco de 2013 que achei merecedor de tal pergunta.