Dia segundo do NOS Primavera Sound. Com os contadores a zeros, foi só somar a partir das cinco da tarde. Em destaque, logo a abrir o evento, o grande Jeremy Jay no mais pequeno palco do recinto, mas também o mais cosy de todos, ideal para o músico americano mostrar aquilo de que é capaz. Mas puxemos o filme um bocadinho atrás, mesmo até à abertura, com os portugueses (de Leiria) First Breath After Coma. Cantam em inglês e fazem lembrar, por vezes, os Animal Collective. Foram mostrando apuro e parecem bem oleados. Houve direito a participação especial de David Santos (Noiserv), coisa que acrescenta sempre valor ao que possa acontecer em palco. São interessantes, mas não trazem grandes novidades na bagagem. Ao nosso lado, deitado na relva inclinada, Pedro Mexia dormitava. Talvez isso queira dizer alguma coisa.
Mas voltemos a Jeremy Jay, que tem novo disco para muito breve, e que veio ao Porto mostrar o mesmo show que deu, há dias, no Primavera Sound de Barcelona. É impossível esconder que quem vos escreve admira bastante o músico que nos deu, em 2015, o denso e brilhante Abandoned Apartments, álbum que passou totalmente despercebido do público português, mas que nós, aqui no Altamont, soubemos registar. Todas as músicas nos pareceram novas, mas o estilo é o de sempre, espécie de marca d’água do artista, um ar arty que assenta na perfeição para quem faz pop-rock com um certo sabor a Cure, a Joy Divison, mas como se tudo fizesse parte da banda sonora de um filme da nouvelle vague. Perceberam? Não? Então ouçam-no. Apesar do bom ritmo dos temas apresentados, há também o típico registo de torch song, que confere ao ambiente sonoro um ar etéreo e sonhador, mas com pesar e dor à mistura. Por muito que não pareçam, são canções de algum desespero, aquelas que ouvimos da voz de Jeremy Jay. Retro pop-rock de primeiríssimo estatuto!
Com “30000 Megatons”, como nós merecemos, começaram os Pond o seu set no Primavera Sound Porto 2017. Passearam pelo novo álbum, The Weather, que nos trouxe um prog-rock desconstruído numa sonoridade ainda mais grandiosa que o psicadelismo viciante a que nos acostumaram. Nunca deixando a setlist coxa de êxitos como “Elvis Flaming Star” ou “A Giant Tortoise”, de Man It Feel Like Space Again e Beard, Wives, Denim, respectivamente. Mostrando que a sua capacidade de colocar música cá fora como pãezinhos quentes não faz com que esqueçam o que o público quer ouvir e, até “Don´t Look at The Sun Or You’ll Go Blind” de Psychedelic Mango de 2009, entrou na festa.
Como um comboio que nunca descarrila, os músicos australianos são uma máquina de multi-instrumentalistas que nunca desilude. A perícia nas paragens dramáticas e nas dinâmicas demonstraram a rodagem da banda e que até parecia fácil recriar aquele som cheio e visceral. Com Nick Allbrook ao leme, na sua presença hiperativa de danças psicadélicas e vocais tão poderosos quanto adocicados, e Jay Watson a tomar o lugar deixado por Cam Avery, tratando o baixo e os synths por tu, pareceu bem claro que os Pond estão no apogeu, oferecendo ao Primavera Sound 2017 o melhor momento de rock até ao momento e mantendo uma multidão entusiasmada num início de tarde.
Terminaram com o tema que dá nome ao novo trabalho deixando a mensagem “Take care of each other”, tomem conta uns dos outros, num Mundo onde, na entrevista que deram ao Altamont antes do concerto, “podemos cair facilmente na narrativa perigosa de que não podemos fazer nada para mudar as coisas”. Yes we can.
À hora marcada, com pontualidade britânica, os norte americanos Whitney subiram ao palco Super Bock. Desta vez com formação completa, pois da última vez que os vimos, em novembro passado, no Mexefest, eram apenas dois. Com o milagre da multiplicação, o sexteto do baterista cantor não esperou muito para aquecer os vários milhares que se expunham encosta acima, ávidos de música com sotaque do país dos gringos. Sem terem dormido, uma vez que o concerto da véspera fora em Bolonha e por qualquer razão ainda não tinham pregado olho, foram logo avisando que queriam fazer um concerto especial. Talvez o vinho rosé bebido diretamente da garrafa tenha ajudado. Vinho, Red Bull e água. Lá fomos sendo embalados pelas adocicadas canções dos Whitney, que gostariam que o sol baixasse um pouco a intensidade, mas sem sucesso… Lá houve direito aos habituais beijos na boca encenados em vários concertos (assim ouvimos a garantia de duas americanas ao nosso lado) e o show foi prosseguindo a muito bom ritmo. “Golden Days” e o “na, na, na, na” do refrão, “I’m On My Own”, “Follow”, “No Woman”, entre outras, passaram pelo recinto para grande agrado do público.
Seguindo para o palco NOS reparamos que na bateria em palco estava escrito “Unfuck The World”. A banda entrou de fato. Toda a banda, meninos e meninas também. E só depois, após os primeiros instantes do concerto, entrou a giríssima Angel Olsen, deslumbrante. Vestido justo e guitarra em punho! Um perigo, uma mulher assim! A voz é, simultaneamente, sua, de Martha Davis (quem se lembra dela, dos distantes The Motels?) e de Nathalie Merchant, dos Ten Thousand Maniacs). Angel Olsen sabe da coisa. Pose fatal, riso a parecer nervosismo de primeira vez, timidez estudada q.b. e um olhar penetrante, como as suas canções. Se a isto juntarmos o talento natural para o palco e para os grandes temas que tem, nada pode falhar. E não falhou, obviamente. Por entre algumas canções com maior fúria roqueira, uma ou outra mais tranquila, mas sempre com espessura, com inquietação, com nervo. Muito bom. Da próxima vez, mudem a frase da bateria para don’t fuck with Angel Olsen!
A correria era cada vez maior e saltar de palco em palco tem pouco de divertido, não fosse a música que neles se ouve, por vezes tão diferente como a dos Sleaford Mods e a dos Teenage Fanclub. Os primeiros, sempre iguais a si mesmos (para onde poderão caminhar estes bons rufias anti-brexit, que parecem ter já todo o caminho feito?) e os segundos, com tanta quilometragem de palco e carreira, ainda se fazem à vida com a pinta que sempre tiveram. Não podiam ser mais diferentes as duas bandas, mas em ambas encontramos relevância e qualidade. Os Sleaford Mods continuam a mandar o mundo inteiro à merda, enquanto os Teenage Fanclub seguram com as duas mãos o mundo particular que bem souberam criar. De um lado, pedras. Do outro amor, saudade e coisas afins. É caso para dizer: “Everything Flows”.
Julien Baker foi o concerto mais subtilmente político do certame, até à data. Com a mensagem dos direitos dos direitos LGBT implícita, mas não ostensiva, num artwork que preenchia a boca de palco onde atuava sozinha com a sua guitarra, num concerto intimista. Quem lá estava, estava por amor. Nunca tantos “I love you Julien” se ouviram repetidamente com tanta emoção. Bandeiras arco-íris abanavam nas mãos do público. Curiosamente uma bandeira que não só representa a luta LGBT mas a paz. E foi uma paz de olhos marejados que Julien nos ofereceu. A voz de dinâmicas avassaladoras que atinge limites furiosos como uma angelical Scout Niblett, associada à perícia nos overdubs fizeram do concerto uma experiência que acertava setas diretas ao coração dos presentes.
Com 21 anos é surpreendente que Julien Baker transporte para o público um respeito e uma maturidade que nunca são impostas, são merecidas. Partilhou músicas de Sprained Ankle, o álbum da dor mundana da criança que tem de continuar mesmo com os joelhos esfolados e os tornozelos torcidos.
Lésbica assumida e cristã praticante mas sempre aceitando todas as dúvidas que nos fazem crescer e pensar, como revelou em entrevista ao Altamont, Baker é uma força viva que vem da terra, ou como se a terra tivesse de encontrar um planeta só para ela, talvez este não tenha a pureza que ela merece. Mas é isso que ela combate, a falta de fé na redenção. Este ainda pode ser o planeta da Julien, se a seguirmos. E é o que farei, com o maior gosto. O concerto fechou com “Good News” onde todos gritaram em uníssono “It shouldn’t be so damn important, but it is to me.”
Passagens curtas, nos concertos e na escrita, para referir Swans e a sua wall of sound industrial que nos abana a estrutura óssea sem qualquer ponta de perdão. Que pancada, que delícia de tareia que levámos durante três ou quatro temas! Mas a vertigem de vos dar conta de tudo, levou-nos a desvios significativos. Numa corrida fomos até Hamilton Leithauser, no palco Pitchfork. Faz lembrar The Band of Holy Joy dos bons tempos. Refrões orelhudos com sabor a verão, bons para cantarolar quando se está de bem com a vida. Soube-nos mesmo bem, tanto a tareia de Michael Gira e companhia, como a festa do homem dos Walkmen.
Para acabar a noite em berraria, Cymbals Eat Guitars! Muito ruído, mas muito bem feito. Pelo meio algumas canções em formato mais acessível, mas sempre a puxar para guitarras altas e estridentes. São miúdos do rock num tempo em que boa parte dos miúdos preferem outras paragens e outros universos. Há que lhes tirar o chapéu por isso. Diz-se que fazem lembrar os Pavement, mas não partilhamos esse exagero. Há que ter calma com a linguagem. Quem lhes dera, e quem nos dera também (que bom seria ter terminado (ou quase) a noite com Stephen Malkmus e companhia…). Um pouco mais abaixo, no palco principal, as eletrónicas de Nicolas Jarr fazia as delícias de milhares e milhares. Estava bom para a dança com copos na mão, estava bom para amar. Belíssima noite sem indícios de frio e sem vento. O francês tem muita qualidade, sim senhor, os efeitos visuais de luzes que não param por um só momento ajudaram à dança. Foi bonita a festa, Jarr! Foi bem bonita mesmo.
Texto: Carlos Lopes com Vera Rodrigues || Fotografia: Francisco Pereira