A arte é a forma de individualismo mais intensa que o mundo alguma vez conheceu – Oscar Wilde
Terminada a banda que finalmente o concretizara enquanto artista (ver capítulo anterior), Morrissey vê-se a braços com vários problemas, além da depressão e paranóia que o afectavam na altura.
No final de 1987, ainda que o baixista Andy Rourke e o baterista Mike Joyce continuassem presentes e disponíveis, o cantor estava, efectivamente, sem uma banda. A saída de Johnny Marr, abrupta e nunca devidamente explicada, fora uma ferida impossível de sarar, e retirara aos Smiths metade da sua alma, tornando impossível a sua continuação com o nível exigido. Enquanto Morrissey, em casa, chorava a perda do projecto, Marr não olhara para trás, e rapidamente começou a tocar com Bryan Ferry e com os Pretenders, contente por ser apenas mais um instrumentista, em vez do líder musical que fora nos Smiths. Para além disso, Morrissey e Marr haviam assinado contrato com a EMI enquanto Smiths. Quando a banda se esfuma em segundos, a editora deixa ir Marr mas vai atrás de Morrissey, exigindo-lhe que gravasse o disco que os Smiths haviam prometido, e já não entregariam.
Surge então em cena Nick Kent, mais um dos ódios de estimação da longa lista do vocalista. Kent, que mais tarde faria nome como um dos mais reputados escritores musicais de Inglaterra, era um guitarrista que havia tocado numa versão imberbe dos Sex Pistols e feito parte dos London SS, cujos membros mais tarde viriam a dar origem a bandas como os Clash e os The Damned. Kent escreve uma carta a Morrissey, oferecendo-se para ser seu companheiro de escrita, um novo Marr. Morrissey não chega a responder, no meio da desorientação. Kent, ele próprio amante de uma boa polémica, sente-se despeitado, e corre para os jornais a dizer que o cantor o havia convidado para o lugar, mas que ele próprio o havia rejeitado. Morrissey, mais uma vez, fica no seu quarto a lamber as feridas, e não sabe como reagir à mentira. A querela tem continuação dois anos mais tarde. Morrissey, já com uma nova banda, está a dar um concerto em Paris quando repara em Kent no público. Quer dar tudo para mostrar ao seu feroz crítico (Kent havia destroçado repetidamente o cantor na imprensa), mas tudo corre mal quando o seu baterista, pura e simplesmente, se confunde e decide tocar uma música totalmente diferente do resto da banda. No meio do fracasso público, Morrissey vê Kent a sorrir, e afunda-se no palco. Mais tarde, a ofensa vai mais longe quando Nick Kent edita um livro de crítica e história musical, com uma frase de Morrissey na capa a recomendar a compra do volume, que iria “tirar os caracóis da sua afro!”. O facto de Morrissey nunca ter dito tal frase nem ter de forma alguma apoiado o livro de Kent parecia irrelevante.
Mas uma personagem mais importante havia surgido para salvar o dia e tirar Morrissey do buraco. Stephen Street, produtor de quase todos os discos dos Smiths, passa pela casa do vocalista, e deixa-lhe uma cassete com temas nas quais andava a trabalhar. Morrissey, sem o apoio de Marr, ficara impotente para criar, tendo sido sempre responsável pelas letras e pela melodia vocal, mas não pelo resto, a cargo do guitarrista. É ao ouvir a cassete de Street que o cantor vê a saída, e percebe que tinha ali um primeiro caminho para demonstrar que, artisticamente, não tinha morrido com os Smiths. São essas as canções que darão origem a Viva Hate, e ao futuro de um Morrissey a solo, que duraria até hoje. Ainda assim, os tempos eram de dúvida, “devido ao escravizante eco,vindo virtualmente de todo o lado, que me dizia que eu nunca poderia ser tão bom como os Smiths”, isto ainda antes de qualquer música nova ter sido editada.
A capacidade de sobrevivência de Morrissey daria sinais inequívocos. Viva Hate irrompe pela tabela de vendas e chega a número 1. Este facto teve um duplo significado: dos discos dos Smiths, só Meat is Murder havia sido número 1, com todos os outros a ficarem-se pela segunda posição; e o novo disco dos Talking Heads,com Johnny Marr, aterrou na quarta posição. Morrissey fingiu não reparar, mas estava a tomar nota de tudo isso. “Suedehead”, óptimo primeiro single, dá-se igualmente bem, assim como o segundo, outro clássico, “Everyday Is Like Sunday”. Morrissey canta este último tema no todo-poderoso Top of the Pops, em palco sozinho pela primeira vez. Por baixo do blazer, uma t-shirt dos Smiths, com a capa de The Queen is Dead. Linda McCartney escreve-lhe, dando os parabéns pelo sucesso da nova fase e convidando-o a escrever alguma coisa para uma campanha a favor dos animais, causa que ambos defendiam ferverosamente.
É nesta altura que Morrissey visita a terra-natal de James Dean, outra das suas grandes fixações, e grava um vídeo na casa da família do actor, com a devida autorização desta. Mais um sonho de infância cumprido.
As coisas corriam bem no Reino Unido e até nos EUA, mas os problemas, como habitualmente, estavam apenas ao virar da esquina, à espera como uma rocha inamovível. Em 1989, os dois ex-Smiths que, com Morrissey, haviam ficado para trás, participaram na gravação de alguns temas da nova carreira do cantor, mas “o infeliz passado desce sobre mim de cada vez que ouço as suas vozes, e decido não os convidar mais para qualquer sessão de gravação”. Foi uma decisão pacífica para Morrissey, que não fazia ideia da tempestade que estava a semear. Logo de seguida, os advogados do baterista Mike Joyce escrevem-lhe com uma ameaça: Joyce tem um caso preparado para levar o vocalista a tribunal e reclamar royalties dos Smiths, e só não o fará se Morrissey tornar o vocalista membro permanente da sua banda (que na altura ainda nem existia, em termos de músicos fixos). “Ignoro a ameaça, sem conhecimento de qualquer argumento legal que Joyce possa ter contra mim, mas a aproximação agressiva dos seus advogados fazem-me decidir largá-lo de vez, entregue à sua espertice”. Seria o princípio da mais desgastante batalha legal da vida de Morrissey, que já viu quase tantas salas de tribunal como de concertos.
Sem consciência da real ameaça constituída por Joyce, Morrissey vê o seu tempo ocupado num conflito com alguém muito mais poderoso: nada mais nada menos que a sua odiada Margaret Thatcher. Tudo devido à música “Margaret on the Guillotine”, desse disco de estreia, que o leva a ser interrogado pelas autoridades, que tentam aferir se o cantor constitui uma ameaça à segurança da líder de ferro. É tudo vagamente pateta e vagamente intimidatório, e Morrissey continuaria a falar abertamente na imprensa sobre o terrível mal que, no seu entender, Thatcher e a sua política de extrema-direita estavam a causar à Inglaterra e ao mundo.
Nesta fase, outro dos companheiros de Morrissey é Michael Stipe, vocalista dos REM, que admite ter ficado invejoso quando ouviu, pela primeira vez, “Everyday Is Like Sunday”. Um dia, admite Stipe, também ele gostaria de tentar uma carreira a solo. “Eu nunca quis isso. Pensei que os Smiths durariam pelo menos 30 discos”, responde Morrissey, no seu estilo habitual.
Com os anos 90, Morrissey começa a perder o gás do ímpeto inicial da sua carreira a solo. “Gravar alguma coisa apenas para dizer que se gravou trouxe Kill Uncle ao mundo, e vejo-me finalmente confrontado com os limites das minhas capacidades, ao mesmo tempo que não estou a conseguir enganar ninguém”, admite. Do disco, o seu autor diz agora que “será sempre o rebento órfão que ninguém quer e mesmo eu – seu pai e mãe – tenho dificuldade em alimentá-lo”. A verdade é que,em 1991, Morrissey tem de se fazer à estrada e ir em digressão, o que significa, em termos muito práticos, formar uma banda. “O Norte de Londres fornece-me quatro músicos, e finalmente começam os anos a solo”, relembra. Dessa primeira fornada já constam dois nomes importantes no futuro som de Morrissey, os guitarristas e compositores Boz Boorer e Alain Whyte.
Em 1992,o gang lança Your Arsenal que, sem que algo o fizesse prever, é tremendamente bem sucedido. Mais estranho ainda, explode nos EUA, e a banda embarca em extensas digressões nesse país. “O surto de histeria em todas as cidades americanas é de tal ordem e tão incrível que a minha memória quase o cataloga de improvável. Estou permanentemente preso num carro com jovens deitados em cima do capot; estradas persistentemente bloqueadas por milhares de sósias de Morrissey; guardas do hotel posicionados à porta do meu quarto para impedir fanáticos de entrar. Sou secretamente empurrado dos locais de concertos através de passagens subterrâneas, e cada dia repete-se com cenas de loucura inimaginável”, recorda. O presidente da Sire Records, que continua a representar (mal) Morrissey nos EUA, dá-lhe os parabéns, por ter atingido “o mainstream da música alternativa, e sem a ajuda da MTV”, ao que Morrissey recorda: “mais difícil ainda, sem qualquer ajuda da Sire Records”.
A loucura por Morrissey leva-o a todos os grandes programas de televisão norte-americanos, e o Hollywood Bowl esgota duas noites seguidas, batendo o recorde dos Beatles para a rapidez de venda dos bilhetes. Morrissey parece assistir a tudo isto como se visse um filme, como se não entendesse totalmente o porquê de tal acontecer ou qual o papel que era suposto ele próprio representar. As coisas eram diferentes com os Smiths, quanto mais não fosse porque eram o nome colectivo que aparecia nos bilhetes, nos posters e no palco. Agora, todos queriam um bocado da mesma pessoa, o cantor. “A minha cara fica amarela quando me dizem que Elizabeth Taylor – um dos grandes monumentos da nossa época – virá ao concerto. Será que me confundiu com outra pessoa”?, interroga-se, ainda e sempre inseguro. O sucesso traz muitos outros fãs famosos. Entre eles David Bowie, o homem do espaço que Morrissey idolatrara absolutamente no seu quarto de adolescente. Num dos seus encontros, Bowie diz-lhe que fez tanto sexo e consumiu tanta droga que é um milagre estar vivo; Morrissey responde-lhe que fez tão pouco sexo e consumiu tão pouca droga que também é um milagre estar vivo. Chegam a partilhar palco, quando Bowie se junta a Morrissey para cantar o encore. “O rapaz de 12 anos em mim – incapaz de ir para a escola se não amenizasse a minha dor com pelo menos uma audição de “Starman” – goza o momento sem acreditar nele”.
É esse o ano em que Morrissey é nomeado para um Grammy pela primeira vez, como prova de que o mainstream americano o adoptara. Perde para Bone Machine, de Tom Waits, americano de gema mas ainda mais weird e outsider que Morrissey. Vinte anos depois, conta o britânico, Waits manda-lhe uma mensagem a dizer que pode ficar com o Grammy, se ainda o quiser.
Em New Jersey, Morrissey é informado que, no local do concerto, é regra que o hino norte-americano seja sempre tocado imediatamente antes de a banda entrar em palco. “Considero isto absurdo e ligeiramente fascista”, diz o cantor, que inicia o concerto com uma versão do tema anti-americano “My country ’tis of thy people you’re dying”, de Buffy Sainte-Marie, para total perplexidade do público.
Enquanto a febre Morrissey consome os EUA, a imprensa britânica nada diz. A invasão de palco é tão frequente que, conta o artista, precisou de 300 camisas para uma das digressões – todas rasgadas por fãs, em palco. Mas Londres, de Moz, não quer histórias de sucesso, mas sim de ódio e de conflito.
De regresso a casa, a desilusão espera o cantor, que é confrontado com as mesmas questões de sempre. A busca da polémica simplista, da frase bombástica, com a música em segundo ou décimo-segundo plano. O New Musical Express torna-se agressivo com Morrissey, graças ao seu novo director, que em tempos escrevera as críticas a todos os trabalhos do vocalista, a solo ou nos Smiths: sempre com um desdém a roçar a violência. Morrissey é avisado pelo seu agente que o NME anda sedento de sangue, e confirma-se. A cara de Morrisey ocupa toda a capa do NME, com a frase “Anda Morrissey a namorar com o fascismo?”, e um artigo virulento, especulativo e pessoal sobre o tema. Tudo se baseou num festival em Finsbury Park, que tinha como grande motivo de atracção marcar o retomar de carreira dos Madness. No final da sua prestação, Morrissey embrulha-se numa bandeira britânica, provocando a mobilização audível de um grupo de extrema-direita presente entre o público. Tal bastou para dar ao NME a desculpa que procurava, sendo que a falta de um desmentido formal do artista foi suficiente para a história ficar na mente colectiva do Reino Unido como uma verdade. Muitos anos mais tarde, o NME fez incrivelmente outra jogada igual, publicando declarações de Morrissey (alegadamente tiradas do contexto) de forma a fazê-lo parecer rascista. Em 2007, o artigo fez mesmo o cantor cortar relações com o jornal e metê-lo em tribunal. Acabou por ganhar o processo sem receber dinheiro, e o NME publicou um extenso e muito noticiado pedido de desculpas, para enterrar o assunto de vez.
Morrissey é, juntamente com Lou Reed, provavelmente o artista musical com a pior relação com a imprensa. O mesmo director do NME havia feito uma crítica a destruir um concerto de Morrissey em Wembley, salientando como este havia feito uma versão “horrorosa” de “Cosmic Dancer”, dos T-Rex. Acontece que essa canção não foi sequer tocada nessa noite. “E depois as pessoas dizem que eu estou a ficar neurótico com a imprensa, quando tudo o que peço é a verdade”, critica o cantor, na sua autobiografia.
Em 1994, Morrissey é convidado para uma reunião com o presidente da Warner Records, na Califórnia. O cantor graceja nervosamente, até porque o assunto do encontro não é explicado. Mais tarde, o seu agente conta-lhe que a Warner ia fazer uma enorme aposta na promoção de um artista alternativo que conseguisse vender milhões, e que haviam pensado nele pelo seu grande sucesso nos EUA. O desengraçado Morrissey não encanta o seu interlocutor, e o gordo cheque foi utilizado para promover um colosso de vendas no ano seguinte: Jagged Little Pill, de Alanis Morissette.
O sucesso não apaga a mágoa de Morrissey em relação ao fim dos Smiths, e ele escreve a Johhny Marr, lamentando a distância pessoal entre os dois. Marr responde de imediato, uma carta curta mas sentida que a autobiografia de Morrissey transcreve na íntegra. O guitarrista expressa pena por os dois não terem ficado amigos e, perante as (tardias, demasiado tardias) perguntas do cantor prontifica-se a encontrar-se com ele pessoalmente, para “explicar as coisas”. Uma semana depois, fazem uma longa viagem de carro, a primeira vez em anos que falavam um com o outro. Ainda assim, as coisas não são explicadas, porque talvez não haja explicação, ou não haja apenas uma certeira e decisiva explicação. Quase como um antigo namorado que havia sido abandonado sem perceber porquê, Morrissey queria saber, mas nesse momento as perguntas ficaram, mais uma vez, para depois. Os amigos falaram de música, da música que haviam criado, das suas origens, do seu encontro inicial. “Eu queria um dia sem culpa, até porque tinha carregado tanta dela ao longo dos anos, como um burro esfomeado pelas ruas de Nova Deli”, conta o cantor. O dia passou-se maravilhosamente. Morrissey não o diz, mas fica implícita a ideia de que, tal como o ex-namorado que anos mais tarde encontra o seu amor e o redescobre vivo em si, algo dentro de si ficou com a esperança de que alguma coisa ainda poderia ser feita. As perguntas ficariam para depois, para não estragar o reencontro com o atirar de culpas entre os dois. Lamentavelmente, as perguntas não chegariam a ser feitas, e as velhas feridas voltariam a abrir-se.
De volta a Londres, Marr figura em todas as publicações musicais, com o tema da conversa a ser, inevitavelmente, os Smiths e o seu velho companheiro de viagem. A versão de Marr muda consoante as entrevistas, mas o tom não é genericamente generoso para com o vocalista. O que foi efectivamente dito e o que foi empolado pela vampírica imprensa britânica não é claro para ninguém, mas Marr não faz qualquer desmentido. “Pessoas que foram muito próximas não precisam de dizer muito para se magoarem umas às outras. Os Smiths foram o primeiro prazer da minha vida, e tudo se tornou uma mágoa incompreensível. Os grupos acabam porque secam; os Smiths separaram-se quando os nossos poderes estavam a aumentar”, lamenta Morrissey, cuja autobiografia ronda algumas vezes o tema do fim da banda, sem nunca o esclarecer totalmente. O leitor fica mesmo com a sensação de que Morrissey, genuinamente, ainda não sabe totalmente a razão para o fim do conjunto.
Mas a vida continua, e a editora de Morrissey sugere-lhe que tente convencer Siouxsie a cantar com ele um dueto para o disco seguinte. Ele sugere-lhe uma de quatro versões de músicas de outros artistas, que ela, enfadada, vai rejeitando. “Ela parece odiar mesmo as pessoas de que gosta”, diz Morrissey, que relembra a cantora como alguém que “olha para toda a gente e para tudo apenas com o sentimento do que lhe é devido, e considera que o seu valor histórico é superior ao da Rainha Vitória. Nunca seremos amigos”, recorda. O par acaba por gravar “Interlude”, mas poucas semanas depois os advogados (sempre, os advogados!) de Siouxsie avisam Morrissey de que este é um tema dela e que só ela pode editar o dueto. A situação acaba por resolver-se, mas as duas estrelas nunca mais se entenderiam. O tema, apontado pelas editoras ao tão almejado número 1, fica-se pelo meio da tabela. Morrissey quase fica contente, pelo menos por não ter de ir à televisão com a soturna cantora.
No final de 1994, o fantasma dos Smiths volta para assombrar o seu criador. O baterista Mike Joyce sai da escuridão onde se enfiara para, com estrondo, reclamar 25% de todos os royalties dos Smiths. Morrissey ignora a ameaça, recorrendo ao argumento do seu adorado Oscar Wilde, de que “Só o que tememos nos pode fazer mal”. O caso de Joyce parece fraco, com ele a tentar várias firmas de advogados que, uma por uma, vão rejeitando representá-lo. Com a sombra da desgraça a pairar, a vida pessoal de Morrissey conhece um feliz desenvolvimento. Começa uma relação com o fotógrafo Jake Owen Walters, a primeira com alguma estabilidade em toda a sua vida. A autobiografia não é explícita, mas em bom estilo Moz deixa as coisas claras, lembrando o momento em que “pela primeira vez na minha vida, o eterno “eu” torna-se “nós”, comigo a, finalmente, conseguir dar-me com alguém. A relação duraria dois anos.
Profissionalmente, as boas fortunas prosseguem. Vauxhall and I entra para o primeiro posto do top britânico e brilha também nos EUA, país onde as vendas de discos de Morrissey poucas vezes haviam acompanhado o sucesso das inúmeras digressões. Estes tempos felizes são gozados na companhia fiel de Jake e de Chrissie Hynde, vocalista dos Pretenders, activista dos direitos dos animais e uma das mais antigas e próximas amigas de Morrissey. Este fala da amiga com genuíno prazer, e admiração. “A Chrissie consegue fazer as pessoas rir num funeral de trigémeos bébés”, descreve.
Para quem teve tão poucas relações e atribuiu, assim, tamanha importância à que partilhou com Jake, Morrissey é seco ao falar do seu fim, e omisso acerca dos motivos. O que é certo que, em 1995, o casal está separado, e o cantor muda-se para Dublin, a princípio enamorado pelas pessoas abertas e francas. Toda a sua família vinha da Irlanda, e Morrissey terá encontrado na forma de falar e de agir do seu povo lembranças da sua infância em Manchester, numa casa cheia de emigrados irlandeses. Entre os seus novos companheiros estão algumas bandas locais, como os The Thrills, que são convidados a fazer a primeira parte do seu concerto no Royal Albert Hall, em Londres, e conseguem mais tarde um contrato com a Virgin.
Quando a banda entra em estúdio para gravar o que viria a ser Southpaw Grammar, primeiro em França e depois em Londres, o contrato com a EMI estava a acabar. A editora fez uma proposta de renovação mas, como Morrissey descreve, “percebe-se sempre a intenção de uma editora pelo investimento financeiro que estão dispostos a fazer”, que não era enorme, no caso de Morrissey e da sua banda. Mais uma vez, o artista lamenta o entusiasmo que a EMI coloca na promoção de qualquer artista que siga as pisadas estéticas de Morrissey, sem aplicar metade do empenho em manter contente o original. “Parecia-me que a EMI estava morta por possuir um artista que fosse sua própria descoberta (e não, como eu, herdado de outra editora) – e que fosse de um temperamento artístico semelhante ao meu, mas que não fosse eu”, lamenta. Rejeitando a oferta da toda-poderosa EMI – que havia seduzido Marr e Morrissey anos antes ao dizer-lhes que os Smiths eram os novos Beatles – o cantor sela o destino de Southpaw Grammar, o último disco ainda devido à editora, que o abandona à sua sorte, sem fazer ondas no mar das tabelas de vendas.
Sem música nova, os Smiths continuavam a movimentar dinheiro. A Rough Trade estava praticamente falida, e surge então a Warner com uma oferta, dirigida também a Morrissey e Marr, para comprar o catálogo dos Smiths. O negócio faz-se, e a Warner avança rapidamente com a reedição de todos os discos mais uma colectânea. Todos se dão muito bem em termos de vendas, com a colectânea a chegar a número 1. A John Peel, o guru da música alternativa da BBC, é feita uma proposta para dar a voz a um anúncio de Singles, algo que ele rejeita devido “à questão do racismo de Morrissey”. Este, que o havia admirado na infância, nunca lhe perdoaria, e faz questão de salientar o ar prazenteiro com que Peel recebeu a condecoração da rainha, para Morrissey uma coisa imperdoável.
Na transição de 1995 para 1996, Mike Joyce começava a aproximar-se, e agora o ataque seria real. Os seus advogados enviavam cartas para casas onde Morrissey já não vivia – o que era conhecido – com o objectivo de provar que este andava a fugir à questão. Joyce, que depois do fim dos Smiths nunca conseguiu conquistar qualquer lugar de destaque enquanto baterista, estava falido, e procurava o maná da sua vida: processar Morrissey por royalties dos Smiths. “Joyce decidiu virar-se para aqueles que o tinham servido generosamente no passado e decidiu que estes tinham a obrigação de continuar a providenciar-lhe dinheiro – e lá foi ele, uma pulga em busca de um cão”, relata um amargurado Moz, sobre o início de uma extensa e muito feia batalha pública travada nos tribunais e nos jornais. Quem, hoje em dia, ainda sonha com uma reunião dos Smiths, que se desengane. Morrissey sente-se traído como nunca antes, e essa ferida nunca há de sarar.
A primeira versão do processo pede royalties a Marr pelas contribuições de Joyce na composição musical, e pede o mesmo a Morrissey pelos pagamentos recebidos por este pelo trabalho gráfico que este havia feito em todos os discos dos Smiths. Mas Morrissey nunca recebeu um tostão por esse trabalho, e esse pedido cai, o mesmo acontecendo ao primeiro, por evidentemente ninguém corroborar a sua teoria de que o seu contributo musical para os Smiths equivalia ao de Marr. O processo acaba por aterrar num pedido de 25% de todas as receitas dos Smiths, desde sempre. Morrissey explica que boa parte do dinheiro recebido serviu para financiar as digressões dos Smiths e a gravação dos discos, mas Joyce – que nunca investiu um cêntimo na banda – não quer saber dos custos, apenas das receitas, “como se todo o dinheiro alguma vez gerado pelos Smiths tivesse magicamente ido parar aos gordos bolsos de Morrissey e Marr, não da editora, não das promotoras, apenas de eles os dois”, conta o cantor. Este mantinha-se calmo: todos os contratos haviam sido assinados por ele e Marr, sem qualquer objecção dos dois outros não-criativos membros da banda. Mais, estes haviam em algumas ocasiões assinado os contratos como testemunhas, sem qualquer problema. Agora, quase 10 anos depois da separação da banda, caberia a Joyce provar que os seus direitos haviam sido desrespeitados, ainda que nenhum documento ou lei sustentasse tais direitos.
O drama do julgamento desenrola-se em vários níveis, e é como se o universo conspirasse para derrotar Morrissey. Em primeiro lugar, a sua autoconfiança de que a razão estava de tal forma do seu lado que não precisava de preparar uma defesa competente; em segundo, uma série de problemas com a sua representação jurídica: a advogada adoece, nomeia um colega mais novo que nunca aparece e, em cima da hora, Morrissey é representado em julgamento por um rapaz que ele nunca tinha visto antes, sem combinar qualquer estratégia; em terceiro lugar, Marr, que inicialmente fica do lado de Morrissey – até porque o pedido de dinheiro também o afecta – é facilmente manipulável pelos agressivos advogados de Joyce, e acaba por causar mais dano que benefício; e, por último, o juiz nomeado para o caso fica para a História como o maior dos inimigos do cantor.
John Weeks, o juiz, é um velhote conservador, e age como se fosse seu papel defender a Rainha e Thatcher do perigoso rebelde que tinha à sua frente. Em vez de exigir que Joyce prove os seus direitos, exige que Morrissey prove que o baterista não tem esses direitos. Quando o vocalista mostra os documentos, Joyce muda de estratégia, dizendo ter sido induzido em erro por Morrissey, ainda que a sua assinatura esteja em alguns dos papéis. A estratégia é sempre incentivada por Weeks, que não perde uma oportunidade para castigar Morrissey e dar força a qualquer argumento de Joyce. Este, quando é chamado a testemunhar, escuda-se num dúbio argumento de não se lembrar bem do que era combinado, mas de que tinha ficado com a impressão de que as receitas seriam a dividir por quatro. Incrivelmente, e sem qualquer base jurídica, o juiz tudo aceita.
Marr, sovado pelos advogados adversários, age como se estivesse disposto a admitir tudo – sobretudo tudo sobre o seu velho amigo – para que o deixassem finalmente sair do banco das testemunhas. Perante o ar atónito de Moz, Marr liga-lhe dizendo que quer combinar finalmente um encontro entre os advogados de ambos, para combinar uma estratégia. Mas esse encontro nunca é marcado, e Marr e os seus advogados agem como se nada fosse. Algo havia mudado as suas intenções, e só demasiado tarde Morrissey percebeu que iria mesmo perder este kafkiano caso. Até a sua idade seria jogada por Weeks contra si, que descreveu o cantor como “um homem mais velho”, ajudando a compor o cenário de que este havia enganado os restantes (até Marr, que estava nas mesmas condições). Como Morrissey nota, os outros três tinham educação superior à altura da fundação dos Smiths, ao contrário dele próprio; todos os três tinham contas bancárias e algum dinheiro, ao contrário dele próprio. Ainda assim, era Morrissey “o homem mais velho”, com conhecimento do mundo, que havia engendrado todo um plano para enganar os restantes.
Na verdade, Weeks não tinha qualquer empatia com Joyce ou qualquer motivo para o apoiar, que não fosse o facto de, abertamente, desprezar Morrissey. Para tal, contribuiu certamente a arrogância do cantor, que sempre se recusou a baixar a cabeça perante o juiz, e ia reagindo a cada injustiça jurídica com audível incómodo. John Weeks, à beira da reforma, não seria desrespeitado no seu tribunal. Não com a imprensa toda a ver; não por um cantor efeminado a quem o juiz não reconhecia qualquer valor para olhar nos olhos. O preconceito e a prepotência ditaram a sentença. Joyce, cuja prestação enquanto testemunha havia sido abaixo de incompetente, foi presenteado com uma vitória de todo inesperada no início do processo, mas que se havia tornado mais previsível conforme este avançava, sob a batuta de Weeks.
Este usa de toda a ironia ao basear a sua decisão numa obsoleta lei do século XIX. Na sentença, descreve Morrissey como “ardiloso, truculento e pouco digno de confiança”, adjectivos que são avidamente replicados na imprensa e repescados ao longo dos anos, sempre que algo corre mal com o cantor.
Os argumentos da decisão são bastante simples, ainda que juridicamente aberrantes. Joyce ganha e Morrissey/Marr perdem porque não foi explicado claramente ao primeiro os termos financeiros da banda. Não passou pela cabeça do juiz que Joyce deveria fazer prova de que tinha direito aos 25%. Weeks assentou o seu veredicto numa noção subjectiva de que a dupla criativa da banda (sobretudo Moz, porque Marr quase nunca era mencionado) havia enganado Joyce, e que este, ingénuo e mais honesto que todos, havia vivido com a convicção de que iria receber os 25%, mesmo que ninguém lho tivesse dito, tal não constasse em qualquer documento e o seu ‘input’ criativo na banda ser de perto de zero.
Na leitura da sentença, enquanto os advogados de Morrissey o incomodam com o pagamento dos seus honorários – apesar de terem perdido estrondosamente o caso – a única solidariedade que o artista recebe vem de Angie Marr, a mulher do guitarrista e sua namorada desde os tempos em que a banda havia começado. “Recordo os meses passados a andar de carro no carocha azul-bébé de Angie, com ela ao volante e Johnny ao lado, discutindo como iríamos conseguir que esse tal de Joyce, baterista, tivesse suficiente fé em nós para se juntar à nossa banda – nunca imaginando que ele nos atiraria para águas tão pesadas como agradecimento. Mas tudo o que começa tem de terminar”, recorda amargamente o cantor.
Morrissey sai devastado do processo, e mais revoltado do que nunca. Com os sistema judicial, que nunca lhe havia merecido respeito, com Joyce, mas também com Marr, cuja tibieza permitiu aquele desfecho. O impulso havia vindo de Mike Joyce, claro, mas para Morrissey a verdadeira traição – ainda que não totalmente intencional – havia chegado nas mãos de Marr, o que tornava tudo muito pior.
Os anos seguintes, em termos de exposição pública de Morrissey, ficaram ainda marcados pelo julgamento. As palavras do juiz Weeks acerca do cantor adensaram ainda mais a sua imagem polémica, da qual ele nunca mais conseguiu descolar. O kafkiano processo foi de tal forma marcante que ocupa boa parte da autobiografia do vocalista, merecendo-lhe as palavras mais duras e os lamentos mais profundos. Mas, mesmo após a derrota, o assunto não estava arrumado.
Em Janeiro de 1999, chega às mãos de Morrissey um documentário sobre os Smiths no qual Joyce, em entrevista, admite clara e explicitamente: “nunca houve um acordo que as receitas seriam divididas a 25%”. Era o elemento que Moz buscava para reabrir o processo, algo que só poderia fazer alegando novas provas. A prova era essa sagrada VHS, à qual ele se agarrou sofregamente. Moz estava agora pronto para a guerra. Em busca de nova prova, surge outro documento antigo do qual nem Morrissey se lembrava, estipulando que Joyce teria direito a 10% das receitas líquidas da banda. O representante do Ministério Público que ficou com o caso foi um tal de Murray Rosen,um experiente advogado. Morrissey envia a este e ao seu advogado pessoal a cassete, mas passam-se semanas sem qualquer palavra dos dois. Insistindo com o seu advogado para que este pressionasse Rosen a submeter a VHS a julgamento, o advogado demite-se sem explicação. O processo é entregue, mas a cassete não está no processo, apenas o documento que estabelece a frase “M. Joyce 10 por cento”. As razões para tal ter acontecido não são claras, e contamos apenas com a teoria (da conspiração) de Morrissey: Murray Rosen estava prestes a ser promovido, e não queria desafiar agressivamente o veredicto inicial de John Weeks, à beira da reforma e cujo estatuto já elevado aumentara com a exposição mediática do caso. Verdade ou não, Rosen veio pouco depois a ser, efectivamente, promovido.
Ainda assim, o documento seria suficiente, certo? Errado.
O recurso foi julgado por três idosos e austeros juízes, pouco agradados com o facto de o sistema ser confrontado com tamanhos atropelos à legalidade, na decisão inicial. Tudo o que Morrissey havia dito na imprensa sobre velhos juízes impotentes não ajudou, certamente, quando voltou a precisar deles. Dos três juízes, um deles passou mais de metade das sessões de julgamento a dormitar, e a cada seu sonoro ronco a esperança de Morrissey afundava ainda mais.
O recurso foi negado. A autenticidade do documento não foi negada, nem o facto de Joyce o ter recebido. O argumento foi, simplesmente, que Joyce não havia percebido a frase “M. Joyce 10 por cento”. Mais uma fraude, e nova pesada derrota para Morrissey. “A verdade dorme, e a lua lá por cima continua, não dizendo uma palavra”, lamenta o cantor. No recurso, Marr nem aparece em cena.
Moz havia sido salvo, em vários aspectos, por um bom contrato com a nova-iorquina Mercury Records, permitindo-lhe pagar as contas judiciais e dando-lhe novo objectivo artístico. Havia gravado Maladjusted em 1997, mas a fraca recepção, bem como as derrotas em tribunal foram um golpe demasiado duro. Entre 1997 e 2004, não houve música nova de Morrissey. Não foi apenas um hiato anormalmente amplo: nunca Moz tinha estado tanto tempo sem gravar, e esse intervalo de produção foi mais extenso, para termos noção, do que todo o tempo de vida dos Smiths. A editora havia saído de cena após o fiasco comercial de Maladjusted, e Moz passaria os anos seguintes tentando conseguir um bom contrato e manter ou reconstruir a sua banda. Para além disso, Joyce continuava à espreita e, uma vez estabelecido em tribunal o seu direito a 25% dos ganhos dos Smiths, passados ou futuros, dedicou o seu tempo a conseguir esse dinheiro (que ninguém sabia dizer quanto era). Primeiro, consegue retirar todo o dinheiro da conta de Morrissey no banco londrino Lloyds. Depois, tenta executar uma “casa de Morrissey”, que efectivamente pertencia à mãe deste havia largos anos. A senhora, acossada pelos advogados de Joyce, queixa-se ao filho, e este reage violentamente na imprensa e coloca Joyce em tribunal. Este responde da mesma forma, alegando que Morrissey havia transferido a titularidade da casa para a mãe para evitar que fosse penhorada para pagar as dívidas. Morrissey ganha este processo, mas fica com 200 mil libras de contas judiciais para pagar. Segue-se semelhante processo com a casa da irmã de Moz, com o mesmo desfecho, e com 100 mil libras de contas para pagar. A sangria continua durante uma década, e Morrissey estima que Joyce tenha conseguido perto de 3 milhões de libras com o processo. “É uma farsa de proporções inimagináveis, com Joyce a ver ser-lhe entregue o comando eterno porque John Weeks, deliberada ou acidentalmente, não colocou quaisquer limites a este roubo”, relata o vocalista.
Em 1999, um caso semelhante ao dos Smiths, mas referente aos Spandau Ballet, chega a tribunal. Aqui, com outro juiz, o processo nem chega a ser aceite, por óbvia falta de fundamento legal. Os mesmos factos, desfechos opostos.
Anos antes do recurso, Joyce e Marr haviam chegado a acordo, deixando Morrissey sozinho, e com uma disposição sombria. As palavras seguintes ilustram o que pensa do que se passou com a sua banda, e destrói qualquer esperança que os menos informados possam ter. “Sim, o tempo pode curar. Mas pode também desfigurar. E sobreviver aos Smiths é algo que não deve ser tentado uma segunda vez. Se a separação dos Smiths foi desenhada para me matar, falhou. Se o julgamento dos Smiths foi uma segunda tentativa para me matar, também tem de falhar. Há um outro mundo, há um mundo melhor; bem, tem de haver, e mesmo se o passar do tempo nos pode amolecer em direcção ao perdão, isso não significa que possamos alguma vez voltar a ser amigos”.
Começa aqui uma nova fase, na sua vida.”Enojado, deixei Inglaterra”. É o início do auto-imposto exílio nos EUA, que dura até hoje, com um ou outro intervalo.
“A Mercury Records despediu o seu presidente, e todos os artistas que este havia contratado, eu entre eles. Não fazia ideia de que passaria sete anos sem uma nova editora. Mas tenho uma nova casa com chão de madeira, e estou momentaneamente livre das mesquinhas guerras de Inglaterra”, descreve Moz, que se estabeleceu em Hollywood, Los Angeles. Aqui, Morrissey entretém-se com alguma normalidade, no fabuloso tempo da Califórnia, que contrasta com o céu de chumbo de Londres e da sua Manchester. Inglaterra ainda se lembra dele, e chega-lhe o convite para se estrear como actor, na muito bem sucedida novela EastEnders. Moz não quer voltar, e não confia sequer que saiba representar. “Uma vez que não me atrevo sequer a ser eu mesmo, seguramente seria ainda pior enquanto actor”. A imprensa, pela primeira vez em muitos anos sem novidades de Morrissey, entretém-se com perfis que traçam o seu declínio, com a Uncut e o Guardian (que se engana e usa uma foto de Edwyn Collins para ilustrar o artigo), desta vez, na linha frente. “A tampa é largada pesadamente sobre o meu caixão”, percebe o exilado.
Mas Moz está, agora, diferente. A vida calma em Los Angeles, bem como o simples passar dos anos e a maturidade que tal lhe traz, dão-lhe uma tranquilidade que nunca havia conhecido. Enquanto a imprensa londrina imagina Morrissey num quarto escuro, chorando a sua ausência de sucesso, este conhece um período de crescimento emocional do outro lado do Atlântico. Entra numa relação profunda com Tina Dehghani, de origem iraniana cujos pais haviam fugido para os EUA quando ela tinha apenas dois anos. Tal é a bonança que o casal chega mesmo a ponderar ter um filho. Los Angeles “dá uma vida concreta, e amacia-me de tal forma que Tina e eu discutimos o inimaginável acto de produzir um pequeno monstro chorão. Havia eu alguma vez pensado algo semelhante? Deitado com incompreensível alegria na minha própria cama, sou agora um símbolo de paz em vez de pânico, com as maravilhosas vistas das casas de West Hollywood da janela do meu quarto a trazerem-me o sol cada manhã, sem falhas”, ilustra.
Este período idílico termina numa manhã: sete da manhã de 11 de Setembro de 2001, quando o atendedor de chamadas de Morrissey parece entupido de chamadas. Ouvindo a primeira mensagem, a voz da sua mãe: “estás bem? liga a televisão, o teu país está a ser bombardeado”.
“O meu país? Com um sentimento de absoluta impotência, passo o dia de olhos na televisão, pensando se é possível que haja ainda qualquer significado no mundo”, lembra Morrissey.
Tudo muda. As ruas ficam desertas, e Los Angeles é apontado repetidamente como alvo de um futuro ataque. Toda a nação, que já é naturalmente paranóica, fica ainda pior. Morrissey assiste chocado quando os EUA e a sua própria Inglaterra se preparam para uma guerra com objectivos financeiros muito próprios, com Bush e Blair assentando toda a estratégia num argumento de que quem os questiona apoia os criminosos do 11 de Setembro. Moz pondera deixar os EUA, mas a presença do sorridente e terrível Blair na sua terra diz-lhe que não vale a pena.
Sem contrato e sem contacto regular com a sua banda, Morrissey aceita o convite do britânico Channel 4 para uma entrevista e um documentário, prometendo dar-lhe total controlo artístico e acenando-lhe com o engodo de que “é altura de a história ser finalmente contada pelo seu protagonista”. Mas a versão de Morrissey como a prima-dona má da fita é simplesmente demasiado irresistível, e o documentário surge cortado, editado e dando voz a várias fontes anónimas que destroem o músico. Este tem, mais uma vez, de recorrer aos tribunais britânicos. Ganha a acção, mas volta a arrepender-se de ter deixado Inglaterra voltar à sua vida. Volta a refugiar-se em Los Angeles. A relação com Tina havia terminado, e nesses tempos Morrissey recorda os dias passados com vários artistas locais, entre eles a sua amiga Nancy Sinatra, que edita uma versão de uma música sua.
Depois de, no final de 2000, a sua grande amiga Kristy Maccoll ter perdido a vida, nos anos seguintes dá-se a morte de vários familiares de Morrissey, ao que se junta o luto colectivo e a paranóia pós-11 de Setembro. Por esta altura, lembra Moz, tudo o que ele queria era voltar à estrada, voltar à música, enfim, voltar a ter uma editora. Consegue-o com a Sanctuary, que reanima uma antiga marca sua, a Attack Records, a pedido de Morrissey. A Attack havia pertencido à Trojan Records, dedicando-se nos anos 70 a editar artistas de reggae e dub. Estava descontinuada desde 1980, mas o catálogo e a marca pertenciam à Sanctuary, e Morrissey queria um começo de novo, numa editora obscura. Desse contrato nasceria You Are the Quarry, um dos melhores discos de toda a carreira de Moz, incluindo os álbuns dos Smiths.
O disco é gravado em Los Angeles, e é um mundo novo. A ausência prolongada do estúdio, as provações que passara, a vida nova que conquistara, tudo inspira Morrissey. A velha banda está de volta, e “as canções chovem de forma magnífica”. Lembra Moz que o disco “toma a forma do passo mais importante até à data, desfocando tudo o resto que alguma vez interessara”.
Mais uma vez, a malapata do número 1 ataca. A meio da semana, é o líder de vendas no Reino Unido a grande distância mas, quando realmente interessa, os insuportáveis Keane conquistam o lugar mais desejado. Ainda assim, You are the Quarry vende 72 mil cópias na primeira semana. É número 2 e o disco de que se fala, e o primeiro single, “Irish Blood, English Heart” atinge a terceira posição, a melhor de sempre para um single de Morrissey. O disco atinge platina, e é o único em 2004 a dar quatro singles no top ten de vendas britânico. Seja de que forma se escolha olhar para este momento, é um regresso triunfal, feito de enormes canções e de uma energia que trazia o velho leão de volta, disposto a provar que estava vivo.
Nos EUA, as vendas são igualmente boas, mas há um problema com a capa: na terra das armas, a Wal-Mart (maior vendedora de cd do país) recusa-se a colocar o disco à venda, porque na capa Morrissey surge com uma metralhadora de gangster nas mãos. Uma versão especial da capa é feita à pressa, só com a cara de Moz, “o que não é particularmente atraente”. O artista não resiste ao comentário: semanas depois entra num Wal-Mart e dá de caras com um DVD de um filme de Brad Pitt, com este empunhando orgulhosamente uma arma. “Nenhuma palmada nas mãos de Brad, aparentemente”.
O sucesso do disco traz de volta velhos fãs e novos amigos. Robbie Williams afirma-se seu admirador e convida-o para cantar um dueto nos prémios Britt. Moz, que despreza a cerimónia e cujo armário de prémios “continua vazio”, recusa, e a imprensa britânica volta a ter onde ferrar o dente, titulando “Moz despreza Robbie”. “É inconcebível para a imprensa que uma recusa possa ser feita em bons termos e acordo, em vez de um escaldante desprezo”, reclama o cantor.
Lá mais para a frente, no início de uma digressão, dá-se uma baixa de peso na banda. Alain White, guitarrista e compositor de boa parte da música do reportório de Morrissey desde 1991, abandona o grupo, alegando exaustão. É substituído por Jesse Tobias, que fez parte dos Red Hot Chilli Peppers de forma breve e tocou em bandas como a de Alanis Morissette. A saída do muito talentoso Alain White (que hoje em dia escreve músicas para artistas como Madonna e os Black Eyed Peas) é sobretudo musical, uma vez que foi de White a pena de muitas das melhores músicas dos discos de Morrissey. Tamanha foi a influência que, mesmo fora da banda, algumas das músicas deixadas em construção na parceria com o cantor viriam a encontrar lugar nos discos seguintes deste.
Alain, que sai da banda pelo seu pé e sem qualquer crítica na cara de Morrissey, aparece mais tarde, previsivelmente, na imprensa, com acusações ao feitio impossível do cantor. Mais um episódio da conhecida saga. O cantor vem mais tarde explicar parte da origem dos problemas. Ainda na banda, White havia exigido, através dos seus advogados, que a sua cara surgisse na capa de todos os futuros discos de Morrissey, naturalmente como este. “Bem, não. A vida não funciona exactamente assim, especialmente não na terra da lógica”, afirma Moz, que é informado que White pretende vir a publicar um livro de memórias sobre o seu tempo passado na banda. Nada de novo.
Dois anos depois de You Are the Quarry, novo disco, Ringleader of the Tormentors, e três anos depois deste Years of Refusal. Compõem um forte tríptico em termos de qualidade e de vendas, o que é acompanhado por grandes digressões, nomeadamente nos EUA e na Escandinávia, região na qual Morrissey sempre foi forte e que reanima com um vigor que surpreende o próprio. Entre 2004 e 2009 Moz consegue o que considera ser o melhor trabalho da sua carreira (o que é apenas aceitável se excluirmos um pequeno pormenor chamado The Smiths). “Todos os três são as gravações da minha vida, e nunca senti maior orgulho, cada um adicionando amor e ferocidade em igual medida, e posições cimeiras dos tops vão sendo conseguidas um pouco por todo o mundo”, lembra.
Seguem-se digressões e concertos, numa sucessão interminável de contacto com o público, com Moz a alternar a sensação de incredulidade por ser tão adorado e o desafio férreo de provar que continua a ser relevante, insistindo nas óptimas músicas novas e apenas de vez em quando cedendo à tentação de dar à multidão uma ou outra música dos ainda muito amados Smiths. Em Glastonbury, aquele que devia ser o seu grande regresso ao Reino Unido, corre tipicamente mal. A chuva e a lama deixam o local impraticável. Morrissey consegue não apenas escorregar e cair várias vezes como abre o espectáculo com uma piada: “Não tenham uma overdose sem mim”, é a sua primeira frase. Entre um público, um rapaz, obviamente, sofre uma overdose. “Com a vaga reputação de ser uma pessoa sã, sinto-me envergonhado”, relembra.
No londrino Earls Court é gravado um concerto com 17 mil pessoas, que viria a ser editado ao vivo. Morrissey descobre, ao ouvir o disco, que a sua converseta entre as músicas foi cortada sem que o tivessem avisado, com o argumento de que foi para o seu bem. “Mais uma vez, censurado pela minha própria editora”, é a sua sentença.
É desta altura um encontro com o ex-futebolista Eric Cantona. Nos anos 90, numa entrevista, quando lhe perguntaram o que andava a fazer este respondera que andava a ouvir os discos de Morrissey. Este, desastradamente, disse à Time Out que “gosto bastante do Eric, desde que ele não diga nada”. Mais de uma década depois, em Paris, Moz sai do elevador do hotel e dá de caras com o antigo avançado do seu adorado Manchester United. Sorri-lhe, mas o francês gela-o com um olhar de puro desprezo. Mais uma vez, pela boca morre o peixe.
Em Inglaterra, num concerto em Blackburn, Morrissey é apupado. Entre duas músicas, lembra ao público que alguns activistas pelos direitos dos animais haviam sido condenados a 12 anos de cadeia por invadir uma fábrica de produtos animais, enquanto o assassinato de uma criança seria punido com metade dessa pena. Os espectadores ingleses, em modo hooligan de futebol, não estão ali para ouvir a evangelização de Morrissey, e os apupos afectam a prestação do cantor. “Hoje em dia já aprendi que as pessoas têm mais tendência para fazer isto se acharem que nós lhes vamos ligar”, reconhece.
Na mesma digressão, o problema que marcou os últimos anos de Moz: os concertos cancelados. Com uma casa cheia em Liverpool, o tempo britânico atira-o para a cama com uma gripe de o rebenta e febre. Tudo tenta, mas não é possível. “É uma experiência terrível entrar em palco sabendo que boa parte do teu alcance vocal já se foi, mas é dada muita importância ao poder da multidão e à súbita purificação medicinal de estar lá em cima do palco, onde as gargantas doridas são esquecidas e as forças ocultas são convocadas. Às vezes funciona, noutras vezes não dá”, relata.
Numa banda, as coisas são diferentes. A voz do vocalista pode não estar bem, ou o baterista engripado ou de ressaca vietnamita, mas a multidão vai ver o conjunto, a banda, e é possível ir disfarçando as insuficiências físicas de um ou outro membro. Mas é o nome de Morrissey, e apenas esse, que aparece nos cartazes e na porta dos pavilhões: se ele falha, a banda pode tocar muito bem, e ninguém quererá saber. A voz, aquela maravilhosa voz, é o seu único instrumento. É como pedir ao baterista que toque com as duas mãos partidas, mas isso não chega para salvar a imagem de Morrissey. O cancelamento de concertos tornou-se uma piada recorrente (cancelou a última visita prevista a Portugal, há dois anos, devido a um problema nas costas do seu baixista) mas é assunto altamente sensível para o vocalista. Depois de o famigerado juiz John Weeks o ter classificado de pouco fiável, Moz passou o resto da vida a tentar provar que esse julgamento sobre o seu carácter estava errado. Mas nem sempre é possível, e a cada novo incidente o mito cresce.
Morrissey relata, na sua autobiografia, o que passa nessas ocasiões. Lembra o que lhe dizem sempre: “Vai lá para cima, isso passa assim que ouvires o som da multidão, assim que sentires os pés no palco, dizem aqueles que ficam na segurança dos camarins”. Muitas vezes, a organização manda um médico local para o analisar e, na esmagadora maioria das vezes, este diz que nada de realmente grave se passa, forçando a realização do concerto. “Isto aconteceu-me muitas vezes, e não tenho outra hipótese que não subir ao palco e provar que, efectivamente, a minha voz está destruída. Depois perguntam-me porque actuei, se não estava bem, mas legalmente não tinha outra hipótese”, explica.
A relação com a imprensa vem e vai e, estranhamente, Moz vai cedendo à tentação. Aceita compilar um cd para o NME, Songs to Save Your Life, mas este surge com quatro temas de bandas novas escolhidos pelo jornal, sem o consultar. “Estas últimas quatro músicas nunca teriam sido escolhidas por mim, mas o NME argumenta (não sem alguma razão) que ao acrescentar bandas contemporâneas o cd ganha um apelo moderno que nunca teria só com os meus gostos da Idade do Bronze”, admite Moz, que concede com algum exagero que os seus gostos pouco passam dos “loucos anos 20”.
Mais tarde, a polémica ressurge quando, numa entrevista com o NME, Julian Casablancas se refere a Morrissey como “paneleiro”. Moz nem tinha visto a entrevista quando recebe uma carta de Casablancas, vocalista dos Strokes, afirmando que todo o parágrafo havia sido inventado pelo jornalista do NME. Algumas coisas nunca mudam…
Em pleno coração da América, Buffalo, Moz volta a ver o brutal coração da terra que o acolheu. No dia depois do concerto percorre a cidade, batida pela chuva e pelo vendo, e comove-se com os sem-abrigo, “permanentemente em movimento, para quê e para onde?, e a chuva parece cair sempre mais dura nas costas das pessoas de cor”, lamenta aquele que a imprensa da sua pátria havia tratado como racista.
Na Escandinávia, o cantor não cessa de se espantar perante a beleza e a juventude do seu público, ao mesmo tempo que nota amargamente o seu próprio envelhecimento físico. “De qualquer forma, não há nada a fazer, e não consigo interpretar se o seu amor por mim é sexual ou paternal, mas não consigo deixar de me perguntar como conseguiram estas pessoas saber que eu existo e chegarem-se a mim”, explica.
Depois de um triunfal concerto em Londres, com ‘stage-diving’ e invasão de palco incluídos, Moz sente-se, pela primeira vez, completamente realizado. “Foi tudo por isto. Olha-me nas faces. Não preciso que me digam porque consigo ver com os meus próprios olhos. Esta magnífica corrente de humanidade representa o poder de ter conseguido algo de importante, e 15 minutos depois sou deixado no hotel. Sozinho no meu quarto, continuo maravilhado, mais purificado que triste”.
Momento semelhante e igualmente ilustrativo dá-se no final de um concerto nos EUA. Perante a sua insegurança e incredulidade, o teclista pergunta-lhe: “Porquê, depois de tantos anos, pareces tão surpreendido? Por que razão questionas o amor?”. “Afasto a questão com a mão, o meu coração ainda preso numa fria manhã de 1970. Sou impossível”, concede.
Em 2007, Morrissey cede a um encarecido pedido de uma entrevista, pelo NME, incentivado pelo seu agente. Tudo corre bem, e antes da publicação o director da revista revela ao cantor que ele receberá o prémio carreira na cerimónia dos NME Awards. Diz-lhe ainda que, para esse evento, pretende convidar Johnny Marr e que seria um sonho ter os dois na mesma sala, pela primeira vez em muito tempo. Moz recusa o prémio, não necessariamente por causa de Marr, mas porque considera que os prémios britânicos são uma farsa que distingue nulidades artísticas para alimentar a indústria. O contra-ataque do NME é mais feroz que nunca: na publicação, a entrevista surge truncada e como parte de um artigo que, mais uma vez, é uma diatribe anti-Morrissey. Mais, na entrevista surgem perguntas e respostas que nunca aconteceram. Segue-se uma batalha legal de quatro anos, algo que poderia ser facilmente resolvido, uma vez que a gravação da entrevista foi disponibilizada às equipas legais dos dois lados, e mostra bem que o que fora dito nada tinha a ver com o que foi publicado. Morrissey ganha essa longa e desgastante batalha legal, conseguindo um pedido de desculpas público e formal. Não pediu uma indemnização.
Ao longo de toda a sua carreira, Morrissey sempre tentou trazer de volta à ribalta as velhas glórias que idolatrava enquanto criança e adolescente, ao contrário de outras estrelas que procuram fomentar e ligar-se a novo talento. Um desses exemplos foram os New York Dolls, um dos primeiros grandes amores de Moz enquanto sonhava no seu quarto, em Manchester (ver primeiro capítulo da saga). Para um concerto em Israel estava previsto um pacote composto por Morrissey, os envelhecidos New York Dolls e Siouxsie. Esta, como era já habitual, fez uma série de principescas exigências à organização e foi dispensada. A agressiva Siouxsie, que abriria para Morrissey uns dias antes, em Madrid, atacou-o abertamente com o facto de ter sido largada. Morrissey de nada sabia, mas o facto de detestar Siouxsie enquanto pessoa não o terá incomodado grandemente. Pior foi mesmo em Tel-Avive. A organização colocou uma outra banda no lugar de Siouxsie, alardeando que o cartaz tinha sido escolhido pelo cantor. Era verdade, excepto esta nova banda, que Morrissey nem conhecia. Para piorar as coisas, os New York Dolls chegam tarde, não fazem soundcheck e dão um péssimo espectáculo. Os Dolls parecem demasiado perdidos para entender e apreciar a oportunidade dada para voltar ao palco, e Morrissey sente-se magoado e traído. Algum tempo depois, novas mortes afectam o grupo, que mais não volta a actuar.
Quando Mikey Farrell abandona a banda para se juntar ao “American Idol” – um estrondoso pecado para Moz – este sente-o com mais peso que o habitual. Haviam-se tornado amigos, para além do enorme contributo que o teclista trazia para o som de palco. Os velhos problemas ressurgem. “Quando Mikey sai, diz coisas terríveis acerca de mim – e todas são verdade”, admite Morrissey.
A digressão seguinte leva-o ao México, país para o qual fugia sempre que possível quando vivia em Los Angeles. O amor que sente naquele país de homens duros e mulheres que oscilam entre a submissão e a força absoluta fá-lo voltar frequentemente. É também uma oportunidade para, perante a imprensa local, destruir a política de imigração dos EUA, ganhando mais uns quantos inimigos e longas horas de espera e de interrogatórios de cada vez que regressa a casa.
Em Fevereiro do ano passado, em cima da hora, recusa-se a participar num importante talk-show americano, por ter sido informado que no mesmo programa estaria presente o elenco de Duck Dinasty, uma série acerca de uma família que produz chamarizes de pato, para a caça. Moz chama-lhes “assassinos em série de animais”, e sai do estúdio em fúria. No mesmo mês, só aceita tocar no Staples Center se, durante esse dia, não se vender carne nas instalações, levando o McDonalds aí presente a ser temporariamente encerrado. Sim, ninguém pode acusá-lo de ser uma pessoa fácil, ou de não expressar abertamente o que pensa.
Ainda nesse ano, mais cancelamentos de espectáculos, alguns devido a uma úlcera, outros por ter apanhado uma intoxicação alimentar que deu cabo de várias datas na América do Sul.
Terminada a volta ao mundo, Morrissey vê-se, mais uma vez, sem editora. A sua fama de intratável espalhou-se de forma incontrolável, e só com muito amor artístico algum executivo apostaria nele. Apesar de todo o sucesso dos discos anteriores e das digressões associadas, ninguém lhe pega. Com tanta abundância comercial disponível em artistas menores saídos dos Factores X desta vida, Moz parece ser, sobretudo, um grande risco e uma promessa de mais polémica do que ganhos. “Bigmouth Strikes Again”, o hino dos Smiths que durante tanto tempo perseguiu a imagem pública de Morrissey, parece ter ganho, sem que o cantor pareça disposto a ceder um milímetro para garantir o seu futuro ganha-pão.
Contratos são estudados e depois abandonados, até que, finalmente, a Sanctuary lhe dá uma nova oportunidade, disponibilizando a sua etiqueta Harvest. Moz salta à oportunidade de gravar o primeiro disco desde 2009, um hiato de cinco anos que terminaria com o celebrado World Peace is None of Your Business, já deste ano. O disco, sem o talento pop imediato de Alain Whyte, perde em singles fortes o que ganha em profundidade, com cada tema mais complexo, com mais camadas, com arranjos mais subtis, criando um mundo em cada canção. É um disco muito diferente dos anteriores. Menos rock, até menos pop, mais maduro, mais adulto. O assunto é o que se quiser: só Moz para juntar a guerra na Ucrânia, o cancro do cólon, o amor e a beleza numa mesma música pop. Maduro, sim, domado…nunca.
Tudo parecia correr bem, mas essa não é a história que já conhecemos, pois não?
Com o disco a poucas semanas de sair, um concerto em Atlanta é cancelado, devido à gripe do cantor. Este culpa publicamente Kristeen Young, a artista que havia escolhido para fazer as primeiras partes dessa digressão norte-americana, que lhe teria alegadamente pegado a doença. É uma queixa mesquinha, e Young responde na imprensa, lembrando que havia sofrido apenas um ataque de alergia. Seja como for, mais um episódio pouco dignificante de um artista consagrado, talvez devido ao pânico de ver ressuscitada a sua fama de cancelador em série. Um site, após este acontecimento, brinca ao dizer que Morrissey parece continuar empenhado em fazer de Axl Rose um artista fiável, por comparação.
Antes da edição de World Peace…, é divulgada uma série de vídeos no youtube, com Morrissey em registo spoken-word dizendo as letras de algumas das novas músicas. Num desses vídeos, surge Pamela Anderson, amiga de Moz e activista dos direitos dos animais. O que parecia ser apenas uma provocação comercial acaba por provar-se ser a única promoção em vídeo para o novo disco. Irritado, Morrissey escreve num fórum da internet que a Harvest/Sanctuary não disponibilizou qualquer orçamento para vídeos ou promoção do disco. Aproveitou também para agradecer aos fãs que, por sua livre iniciativa, iam fazendo vídeos para as músicas do novo disco, e terminou a missiva dando mais duas ou três lambadas no sistema de edição musical actual, dirigindo-se à editora com a qual assinara poucos meses antes.
A resposta não tardou, com a Harvest a terminar unilateralmente o contrato com Moz. “Bigmouth Strikes Again”, indeed. A disputa que se seguiu, e que está ainda em curso, levou o disco a ser retirado das lojas físicas, do Itunes e até do Spotify. Numa óptica entrevista ao Expresso deste fim de semana – na qual Moz é igual a si próprio e consegue ofender toda a família real, o sistema bipartidário e basicamente o mundo inteiro – ele explica a razão. É ele quem detém os direitos de edição do disco, e como tal está à procura de uma nova distribuidora; entretanto, não quer dar um cêntimo a ganhar à Harvest.
Morrissey, sempre encantador, não consegue escapar à polémica mesmo quando lhe dão uma pergunta fácil. Desta feita, nessa mesma entrevista, é questionado sobre o que se lembra da sua última passagem por Portugal, há oito anos, no Porto. “Não vai gostar do que vou dizer, mas a minha única recordação é horrível. Estávamos no Porto e vimos um borrego esfolado na janela de um restaurante. Ficámos em choque pelo menos durante 40 minutos. Penso que nunca vi nada tão horripilante. E era para atrair as pessoas para o restaurante! Foi como ver uma criança esfolada”.
Tudo isto é Morrissey, que regressa agora ao nosso convívio. Com polémica, sim, mas sendo sempre quem é, dando tudo o que tem, esperando apenas um pouco do nosso amor, pelo qual desespera mas que, secretamente, acredita não merecer. Moz em 2014,com novo disco, uma digressão mundial que começa em Lisboa, e mais uma vez sem editora, o futuro novo ponto de interrogação.
Não encontro melhor forma de terminar esta série de artigos que com algumas palavras que dediquei ao último disco. Aqui vai.
World peace is none of your business não trará a Morrissey nem mais um fã que já não tivesse, e é possível que afaste alguns dos antigos. Não sendo um álbum “difícil”, requer atenção e recompensa essa atenção. Para quem, ao décimo disco, esperava ver o artista revelar um pouco mais do que é, isto é contrário: é o adensar do mistério, a multiplicação de mundos e ambientes nos quais ele se move.
World peace is none of your business é, apesar de todas as suas limitações medidas por critérios mainstream, um triunfo. Porque reforça, mais uma vez, o estatuto de Morrissey enquanto o autor mais criativo, inventivo, audaz e autêntico do mundo da pop actual. O mistério não está desfeito. O mito envelhece, amadurece, mas insiste.
Prima-dona? Génio? Relíquia do passado? Sim, talvez tudo isso.
Acima de tudo, Morrissey. Ainda e mais do que nunca, um enigma artisticamente relevante.