É para longe das grandes luzes e holofotes do hip hop que vamos. Quando meio mundo ansiava que chegasse Waves (afinal de seu nome The Life of Pablo), de Kanye West e quando só quase ao fim de um ano começamos a entrar na ressaca de To Pimp A Butterfly, chutamos estes dois (e outros mais) para canto e damos quase dezoito minutos da nossa atenção a Lice.
São dezoito minutos que se vão transformar depressa no dobro e no triplo e por aí fora, até eventualmente aparecer outra coisa, com a garantia que irão voltar aqui. O que é que há neste trabalho que o eleva, apesar da sua curta duração? Primeiramente, aquilo que é talvez uma das marcas mais distintivas quer de Aesop Rock, quer de Homeboy Sandman: a perspicácia e agilidade na utilização da palavra. Esta é, de resto, uma das características que me prende ao trabalho de Aesop Rock. Sempre houve uma encriptação das estórias contadas, há um código linguístico tão específico e referencial, que muitas vezes se torna complicado compreender na totalidade o que Aesop Rock nos quer contar. E isto por si só constituiu um embate que eu quis ter, e foi provavelmente o mais intenso que tive com todos os artistas que oiço. O discurso de Aesop Rock é complexo, mas quando finalmente lá cheguei, foi como voltar às salas de aulas e analisar um texto de um autor qualquer. Quem é que nunca teve aquele gostinho de vitória quando descobre uma referência nova em T.S. Eliot, por exemplo? O sentimento é parecido, afinal, é de arte que estamos a falar.
Lice são cinco temas de beats simples, que fluem perfeitamente entre si, e que nos fazem afastar dos critérios de produção e nos obrigam a centrar na palavra debitada pelos dois rappers e desfrutar. E o facto deste ser um trabalho curtíssimo é também uma das suas mais-valias: não há fillers, não há espaço para interlúdios e samples exagerados. É por isto também que é tão fácil ouvir este EP uma e outra vez. Os temas são curtos e directos, e o contraste entre o tom super cool e descontraído de Homeboy Sandman por oposição ao modo áspero e às vezes de confronto de Aesop Rock dá-nos uma certa sensação de bipolaridade, mas ao mesmo tempo torna todos os temas muitíssimo equilibrados, diria até, agradáveis.
“Vertigo” dá o mote, e é o tema que mais nos faz lembrar o ambiente de Skelethon. Rapidamente passamos para “Katz”, com os samples de Emerson, Lake and Palmer a dar um groove específico e é aqui que a tal natureza colaborativa se começa a afirmar e que nos começamos a distanciar cada vez mais da noção a solo de cada um dos rappers para começarmos a ver esta colaboração quase como a criação um ser bicéfalo. E chega “Environmental Studies” onde me parece que esta ligação é descrita – “Speakers of an unknown dialect / Each breath comes with its own environment”.
Damos por nós, e já estamos a chegar ao fim. “So Strange Here” é um diálogo sobre a carreira de cada um, as perspectivas em relação à realidade e à forma como o público reage às posições e decisões dos que se tornam figuras públicas. De tom praticamente confessional, esta é a faixa com a linguagem menos encriptada do EP, a tocar num tema que é recorrente no hip hop – a abordagem pessoal à criatividade, o ser e o parecer. É a questão da imagem que não passa disso mesmo, mas que no final é mais um produto vendido ao público.
Fecha-se o trabalho com “Get A Dog”. Sem qualquer vergonha, este é o meu tema favorito de todo o EP. O tom provocatório e desafiante, uma boa dose de arrogância e basófia – que toda ela é parte do sentido de humor transversal a todo o trabalho – são levados ao máximo aqui. Preparem-se: vão dar por vós a cantar o refrão (ou que está mais próximo de ser um refrão) sem sequer estarem a ouvir a música. Ah, e vale a pena dizer que “Get A Dog” tem a mais brilhante utilização que já ouvi de um sample de Linkin Park. Só por isto, já vale a pena irem ouvir.
Para terminar, deixo apenas uma nota para o artwork de Jeremy Fish, tão em linha com o discurso bem-humorado de Lice. É tão comum deixarmos de lado os artistas que trabalham com os artistas (redundante, sim) e que são também parte do resultado final e que também eles fazem com que tenhamos vontade de acrescentar mais e mais peças às nossas colecções de discos.
Lice é isto. Agora vou carregar no play outra vez.