A diferença que dois anos fazem. Se, em 2004, Joanna Newsom emergia na cena musical freak folk de olhos grandes e sonhadores, voz berrada algures entre a criança e a bruxa e composições que, embora revelassem um à vontade com as palavras e a música para além da sua idade, prendiam-se com uma vontade simples de ver o mundo de forma dócil, encantada e infantil, em 2006 multiplicou-se de todas as formas possíveis com o seu LP Ys – pronunciado “ees” ou “yeesh” – que rouba o nome à mítica cidade erguida na costa da Britânia, apenas para mais tarde ser engolida pelo oceano.
E de que forma o fez. Ys é um marco de coragem: foge da convencionalidade, revela-se difícil e pouco orelhudo, fica-se por cinco músicas de uma amplitude astronómica – tanto em comprimento (a mais curta dura sete longos minutos) como em decoração (melodias complexas e labirínticas, letras mais isotéricas, metafóricas e cheias que nunca e, claro, uma produção esmagadora do também ele gigante Van Dyke Parks – que também contribuiu com os arranjos orquestrais que elevam as melodias tal o mar em tempestade eleva o navio).
Newsom, sempre ciosa da sua vida pessoal, revelou na altura uma pista rara quanto ao seu segundo disco, referindo-se às cinco músicas de Ys como ilustrações dos cinco momentos mais marcantes da sua vida até às suas então vinte e quatro viagens em torno do sol. Surgiram as hipóteses; uma morte de alguém próximo; uma relação tumultuosa; uma doença prolongada. Tudo isto são, claro, tiros no escuro de um grupo restrito de fãs que se debruçam obsessivamente sobre os escritos de Newsom, tentando deles retirar um significado concreto que lhes satisfaça: mas a destreza com a qual a letrista camufla o caminho mais fácil entre covas de referências, jogos de palavras, distrações alegóricas e armadilhas abstracionistas torna o seu discurso praticamente impenetrável a quem tudo queira saber – mas, como todos os grandes escritores, mesmo sem compreender tudo o que a levou a escrever o que escreveu, sabemos que acabamos sempre por voltar às suas palavras para nos sentirmos nós próprios estranhamente compreendidos.
Atentar nas letras com as quais conduz as suas melodias de uma ponta à outra, no caso de Newsom, é essencial – talvez até mesmo obrigatório. Desde a sua estreia, com The Milk Eyed Mender, de 2004, que Newsom se revelou uma promessa extraordinária não apenas na esfera musical mas também na esfera – poder-se-ia quase cometer o risco de assim o dizer – literária. Porque Newsom é exigente, árdua, incansável: não se limita a ordenar sílabas que se encaixem meticulosamente na métrica – parece que, ao invés das palavras seguirem a música, a música segue as palavras. E se no seu primeiro disco se revelou, enquanto escriba, um diamante em bruto, em Ys brilha com a graça de um astro, daqueles que surgem uma vez a cada mil luas cheias – Dylan, Mitchell, Cohen e agora, Newsom. A sua rara mestria com as palavras pega-nos pela mão e atira-nos para um mundo que, mesmo não sendo o nosso, é de nós todos – um mundo que une a fantasia dos cosmos com a realidade do luto, uma fábula de outros séculos com a atualidade de um amor vigarista, a beleza de um céu estrelado com o horror de não conseguir abandonar o refúgio dos lençóis. É impossível ignorar a ocupação do trono por parte de Newsom junto dos maiores com letras tão cheias de vida e de cor, pitorescas e arrebatadoras como a seguinte, da faixa “Emily”: “I dreamed you were skipping little stones across the surface of the water / Frowning at the angle where they were lost, and slipped under forever / In a mud-cloud, mica-spangled, like the sky’d been breathing on a mirror”
Mas esquecer a cama sonora na qual se deitam palavras como estas seria um crime igualmente punível; de uma produção orquestral de proporções que inspiram arrepio, Ys é talvez o disco mais ambicioso de Newsom até à data, e talvez um dos mais ambiciosos (falando de comprimento, extensão e produção) deste século presente. Além de Van Dyke Parks, a própria Newsom teve mão no resultado arrebatador da montagem orquestral que acompanha o álbum de uma ponta a outra (salvo uma faixa). Se as letras e a melodia desenham por si, é a orquestra colossal que enche de cor as estrelas, as nuvens, os rios e as montanhas sobre as quais Newsom se demora.
Mas a harpa, à qual Newsom já se referiu como uma espécie de “apêndice; uma extensão de mim própria” é a mais fiel companheira da compositora na sua jornada em Ys, como em tantos outros trabalhos. Quando a sua voz cessa e a orquestra se cala, são os suspiros das cordas que preenchem os pontos finais nas suas histórias. A harpa, instrumento muitas vezes associado a escalas intermináveis de composições maçudas e de ordem angelical, para serem apenas ostentadas por musas antigas que se repetem e se baralham nas suas próprias proposições, toma novos contornos ao comando dos dedos experientes de Newsom. As cordas, que afinal são tantas, parecem triplicar em significados – transmitem-nos beleza, alegria, crueldade, dor, melancolia, saudade. Talvez o exemplo mais claro da força da harpa em Ys seja “Sawdust and Diamonds” – na qual a orquestra de Parks se retira pela primeira e única vez, quando os primeiros acordes surgem de relâmpago no meio do disco. Ao longo de nove (sim, nove) magistrais minutos, Joanna encontra-se sozinha com o que parece ser o seu único e mais próximo amigo no mundo; aquele bicho esquisito com cordas em vez de dentes. E a sua voz une-se à harpa numa melodia que cresce e cresce sem fim, tremendo de dor, de medo e de uma beleza que arde. E, entre ela e a harpa, não falta mais ninguém, e parece que o humano e o objeto partilham uma intimidade que apenas podemos adivinhar.
É sempre arriscado tomar posições radicais, principalmente no mundo da música, da crítica e dos gostos, um mundo que parece estar em constante mutação. Mas uma posição não pode deixar de ser tomada neste texto: sendo que estas palavras resultam dos dedos de um ser humano com sentimentos e opiniões, também eles vítimas de uma transformação galopante. E a posição é a seguinte: Ys é um disco absolutamente, irrefutavelmente e inegavelmente obrigatório para todos os portadores de corações. Mais do que um disco, é uma jornada que nos leva a territórios inexplorados e para dentro de nós próprios. Abrindo com a sonhadora “Emily”, uma lição (errada) sobre meteoros e constelações, seguindo para “Monkey and Bear”, que começa por ser uma fábula de crianças sobre animais aventureiros e e cedo se transforma num conto de terror de amor e abuso, prosseguindo com “Sawdust and Diamonds”, continuando com a faixa que mais brilha e que mais nos vai pesar no peito em todo o disco, “Cosmia” – um ensaio sobre luto, abandono, desespero e solidão – e terminando com “Only Skin”, um verdadeiro épico que se demora ao longo de dezasseis extraordinários minutos de harpa, orquestra e uma letra que cruza uma história de devoção amorosa com eufemismos franceses, plantação de cerejeiras e sabujos desdentados de penas na boca – em Ys, Newsom não nos dá um segundo para respirar. Para dar descanso ao coração. E é isso que o mantem um disco tão especial e até mesmo importante, passado dez anos – é um disco que cansa o coração. E os corações precisam de ser cansados. Peço, imploro: deixem que esta coleção de cinco músicas vos conquiste, e vos canse até ao fim dos vossos dias.
Por todos os deOOOOOOses, como seu texto é belo!, chega a doer, de uma dor boa que a gente deseja ainda mais. Li seu texto agora, em 08 de setembro de 2020, e ouço o disco desde 2010, mas, que alegria saber que cada acorde da obra-prima da Newsom foi rigorosamente justificada pelas metáforas desse texto em que a emoção e a razão se harmonizam como as cordas da harpa tangidas pelos dedos de Joanna
Fiquei extasiado com análise de “Ys”. Descobri Joanna Newsom recentemente e foi a melhor coisa que me aconteceu. Comprei todos os discos, mas Ys que ganhou meu coração. Espero profundamente me deleitar nas canções de Newsom agora e no futuro…