O projecto Estilhaços está há dez anos a espalhar perigosos fragmentos sobre a música e a literatura portuguesa. Foi em 2004 que rebentou o primeiro estilhaço, um espectáculo de spoken-word de Adolfo Luxúria Canibal que deixou o Teatro do Campo Alegre no Porto completamente destruído. Enquanto Adolfo arremessava textos do seu livro Estilhaços, o seu cúmplice António Rafael projectava tonitruantes riffs de piano. Ambos tinham antecedentes criminais, pertencendo desde há longos anos ao colectivo Mão Morta (a perigosa banda que no seu novo disco apela ao homicídio dos representantes do poder). Há diferenças nos modos de actuação dos dois colectivos: nos Mão Morta a música tem mais espaço para ser protagonista do que nos Estilhaços. No entanto, mesmo nos tempos mais remotos dos Mão Morta, havia já uma clara propensão do cabecilha Adolfo para colocar a sua decadente prosa no centro das atenções: quer “Aum” do primeiro álbum, quer “Bófia” e “Divino Marquês do terceiro, revelavam já esta sua irreprimível tendência.
O atentado foi registado em áudio em 2006, num disco com o nome Estilhaços.
Mais tarde, Henrique Fernandes e Jorge Coelho juntaram-se à quadrilha de Adolfo. Nenhum dos dois é propriamente a virgem do bairro. Henrique Fernandes tem cadastro em bandas experimentais pouco recomendáveis como os Mécanosphère, os Stealing Orquestra e os Space Ensemble. Jorge Coelho tem um percurso igualmente suspeito nos Cosmic City Blues, Zen e Torto.
Em 2010, acontece novo atentado, desta feita com o propósito de atingir a poesia de Mário Cesariny. Novos textos-granada de Adolfo são impiedosamente lançados contra as poesias de Cesariny, cuja obra fica gravemente ferida pelos estilhaços. Este segundo atentado é fixado em disco em 2011 com o nome Estilhaços e Cesariny.
Em 2014, ocorre o terceiro atentado, cuja autoria é de imediato reclamada pelo bando de Adolfo. O alvo escolhido foi a Associação AO NORTE e na explosão foram atingidos oito dos livros publicados pela colecção “Os Filmes da Minha Vida”. Entre as vítimas, encontravam-se ilustrações dos filmes Deadman de Jim Jarmush, Era Uma Vez no Oeste de Sergio Leone e Vai e Vem de João César Monteiro, entre outros. A população ficou em pânico, temendo a qualquer momento novo atentado. Capitalizando essa ansiedade, a indústria musical lançou recentemente o disco Estilhaços Cinemáticos. A ideia é facturar o máximo dinheiro possível com o massacre.
Estamos perto das eleições pelo que a pressão política para a instituição policial apanhar o bando é ainda maior. Os peritos já investigaram o local do atentado, recolheram amostras e analisaram-nas em laboratório. Foram encontrados altos teores de pólvora, tanto nas palavras de Adolfo como nas escabrosas notas musicais escritas e interpretadas por António Rafael, Henrique Fernandes e Jorge Coelho. Segundo relatório dos peritos, este espectáculo terrorista segue o padrão do costume: o texto é o cerne e a música um poderoso amplificador do poder explosivo da palavra.
Quanto às vítimas, filmes como Fitzcarraldo de Herzog e Sétimo Selo de Bergman foram apenas superficialmente feridos pelas bombas-canção “Na Crista da Demência” e “Entre Deus e o Diabo”. Felizmente, os seus enredos mantiveram-se quase intactos. Já a mesma sorte não tiveram Vertigo de Hitchcock nem O Espírito da Colmeia de Victor Erice, cujos argumentos foram gravemente desfigurados pelas certeiras canções “A Mulher do Anterior Inquilino” e “Nas Asas do Veneno”.
Com maior ou menor poder destrutivo, o bando actuou sempre do mesmo modo, deslocando perigosamente o significado dos filmes originais para um novo contexto. Veja-se o caso da “Delícias Armadilhadas”, a canção que – num crime perfeito – atingiu O Anjo Exterminador de Buñuel. Lembremo-nos do enredo clássico: no final de uma festa aristocrática, os convidados não se conseguem ir embora da mansão; não por haver qualquer causa física que os impeça, mas por uma qualquer estranha razão psicológica que desconhecem. O perverso Adolfo transfere uma estrutura narrativa semelhante para um contexto diferente: o de uma orgia. Depois de uma noite desbragada, o narrador pretende regressar a casa, cansado de tanta lascívia e devassidão; mas por mais que tente abandonar o local, nunca o consegue. Sob este mecanismo narrativo, a actividade aprazível do sexo é reenquadrada enquanto uma terrível e inescapável maldição: “À minha volta as vaginas erguem-se como bocas ameaçadoras exigindo o meu sacrifício e avançam sobre mim, lábios abertos em palpitações furiosas prontas a sugarem-me até ao último sopro.”
Quem escreve palavras tão torpes – e quem é seu cúmplice através das perversas músicas que as acompanham – não pode continuar à solta. Já chega. Não podemos continuar a permitir que estes quatro blasfemos continuem a ofender impunemente todos os pilares morais em que assenta a nossa cultura. A quem encontrar Adolfo e seus comparsas, oferece-se uma generosa recompensa. Mortos ou vivos. De preferência mortos.