Estamos perante um álbum que pode muito bem definir o que deve ser o chamado «smooth» jazz.
Até tenho medo de começar a escrever sobre um álbum de jazz.
A frase anterior foi escrita a tremer. Os meus dedos não param quietos, o meu coração não devia estar a bombear sangue com esta intensidade e sinto, por todo o meu corpo, suores frios. Agora já não há volta a dar.
Sinto que tenho de oferecer umas quantas palavras minhas a Night Lights, de Gerry Mulligan, há já algum tempo. Estou em dívida para com o saxofonista norte-americano desde o dia em que este LP apareceu na minha vida, a convite dos meus ouvidos.
Estamos perante um trabalho que é datado de 1963. (Tem idade para ser meu pai.) Tenho de ter muito cuidado com o que escrevo, pois não quero faltar-lhe ao respeito. Nos 56 anos que se seguiram ao lançamento do álbum, o mundo mudou e o tempo passou, no entanto, Night Lights não envelheceu.; não tem uma única ruga este trabalho.
Bem sei que não devemos julgar um livro pela capa – neste caso, um LP –, mas a capa que segura o álbum é simplesmente magnífica.
O processo de audição do álbum tem de começar na observação da capa – começou para mim. Começa e verão que nela também termina. A música que encontramos em Night Lights faz-nos imaginar a cidade representada pela pintura que faz a capa do projeto.
Após um longo dia de trabalho, saímos, cansados, do escritório. Vestimos o casaco porque, lá fora, está frio e a chuva não quer parar. E seguimos, de chapéu na cabeça, para casa. Só queremos chegar a casa. Nunca desejamos tanto estar em nossa casa como neste fim de tarde, que é começo de noite. Andamos. Andamos. Andamos. Evitamos os encontrões de pessoas mais apressadas. E tentamos não pisar poças com os pés.
Night Lights é chegar a casa, após mais um dia de trabalho, numa cidade que parece só existir de noite, quando os candeeiros da rua e os faróis dos carros se acendem.
Neste projeto, Gerry Mulligan conta com a ajuda de cinco camaradas musicais seus, formando, com os mesmos, o Gerry Mulligan Sextet. Mulligan é, claro, o dono do saxofone barítono, sendo que na primeira faixa (“ Night Lights”) também toca piano. Art Framer, por sua vez, vem ter connosco no seu fliscorne. Bob Brookmeyer toca trombone, Jim Hall está na guitarra e Bill Crow no baixo. Por fim, para completar o sexteto, vemos Dave Bailey sentado, com baquetas nas mãos, na bateria.
Este terá sido, talvez, um dos meus primeiros amores no mundo do jazz. Hoje, analisando o projeto, faz sentido que Night Lights tenha sido uma dessas minhas primeiras paixões neste universo. Recomendo, nesta mesma frase, este álbum a todas as pessoas que pretendem entrar no mundo do jazz, mas não sabem como.
Estamos perante um álbum que pode muito bem definir o que deve ser o chamado «smooth» jazz.
Night Lights reúne, dentro de si, apenas sete composições que, juntas, não chegam à meta dos 40 minutos (o álbum tem apenas 34 minutos). E todos os momentos do álbum são leves e estão todos no devido lugar. Estamos perante um álbum apenas feito de melodias harmoniosas e delicadas, onde todos os sons – os do saxofone, os da bateria, os da corneta, os do piano, etc… – coexistem numa paz idílica.
Neste projeto, não há nada fora do sítio.
Night Lights é a primeira faixa do álbum. A bateria, que nos primeiros segundos ouvimos ao longe, empurra-nos para a cidade retratada na capa do LP.
Os primeiros dez segundos do álbum podem muito bem constituir o melhor momento desta produção, e com isto não pretendo plantar a ideia de que os outros momentos do álbum são menos bons – porque não são. Os segundos iniciais de Night Lights são, porém, bastante explicativos do que é que o restante álbum irá ser: o restante álbum vai ser então um regresso a casa, depois de um dia de trabalho que pareceu não ter fim, feito por ruas implantadas numa cidade cuja escuridão só é derrotada pela luz elétrica, que explode no interior dos edifícios.
Muito cedo no álbum iremos perceber que escutar esta música é como beber um bom whisky, com o número certo de pedras de gelo (ou até sem pedras de gelo, se preferirem).
Ao longo de todo o processo de audição do álbum, sentimo-nos relaxados, calmos e livres. Durante 34 minutos, somos o saxofone de Gerry Mulligan ou o bater calmo da bateria de Dave Bailey. No entanto, há também momentos de melancolia profunda, sobretudo nas faixas “In The Wee Small Hours Of The Morning” (uma das mais bem conseguidas de todo o projeto) e “Tell Me When”. A vida na cidade é escura, triste e solitária e essas duas composições captam esse sentimento que todos nós já sentimos e que não queremos voltar a sentir.
Apesar de tudo, existe sempre uma pequena amostra de felicidade nesses momentos mais tristes e sós, sendo por isso que esses dois momentos do projeto estabelecem connosco uma relação indescritível, onde a nossa solidão é compreendida pelos músicos, que nos oferecem sons que são sentimentos.
Ao fim do dia, questionamos todas as escolhas que fizemos ao longo da nossa vida. Todos os dias o mesmo julgamento. Mas grande parte desse julgamento surge porque estamos cansados. A vida na cidade é difícil. As pessoas andam de um lado para o outro, aos empurrões, e pelo caminho vão-se esquecendo de nós. Na cidade, especialmente à noite, quando vemos apenas candeeiros de ruas acesos, ninguém quer saber de ninguém, pois toda a gente só pensa numa coisa: em chegar a casa.
Night Lights é esse chegar a casa.