Salvador Menezes é membro dos You Can’t Win, Charlie Brown, estreou-se a solo em 2017 com Novas Ocupações e, pouco depois, desapareceu dos holofotes. Recuperado desse bloqueio criativo agudo, regressa agora com novo fôlego e presenteia-nos com Vigia, um disco intimista e tocante, feito entre pandemias e paternidades, que nos envolve num abraço reconfortante.
Comecemos por falar de apoios à produção fonográfica – concorreste, e ganhaste, apoios da GDA e SPA. Sem isso, não haveria disco?
Foi mesmo essencial, o disco não existiria se não tivesse apoios. Começou com o apoio da GDA, depois tentei o da SPA – que também acabei por conseguir o apoio – e fez com que eu tivesse uma rede para estruturar e dizer «tenho este dinheiro, o que é que eu quero fazer com o meu disco? Quero que tenha um ensemble». Pedi ao Martim Sousa Tavares, o maestro, para me ajudar nos arranjos – e isto fez também com que eu pudesse pagar a toda a gente: aos sete músicos do ensemble, ao Tomás [Sousa] e ao Pedro [Branco], que me ajudaram ao longo do disco todo, o Tomás mais na parte percussiva e o Pedro na parte dos arranjos de guitarras, teclados e baixos, ao Manuel Pinheiro que também participou, à Leonor Arnaut, à Inês Sousa. Consegui que todo o trabalho pudesse ser pago a toda a gente, de uma maneira que fosse justo, porque estar a pedir borlas não é uma coisa que me agrade. Portanto foi uma rede perfeita para eu conseguir fazer a ideia que eu queria do disco, sem este dinheiro eu não teria conseguido fazer o disco que está aqui, de certeza absoluta.
A alternativa era fazer uma coisa mais lo-fi?
Sim, teria de fazer uma coisa mais caseira. Não poderia ter contratado o Eduardo Vinhas, que é uma máquina a gravar, tinha que rever tudo e não ficava a soar como está a soar, nem os arranjos seriam aqueles arranjos, tudo seria bastante diferente.
Mesmo na composição?
A base continuaria a mesma, guitarra e voz, foi a estrutura inicial que eu pensei para todas as músicas, foi uma coisa que eu quis desde o princípio e que aprendi mesmo com o disco anterior: tinha muito mais certezas daquilo que queria fazer agora, queria fazer um disco em que a guitarra e a voz fossem o foco principal e que a música funcionasse relativamente bem só com assim. Ou seja, a base seria parecida, os arranjos e a gravação seriam diferentes, portanto seria outro disco. Era isto que eu tinha imaginado, era isto que eu queria para o disco, consegui fazer aquilo que eu queria, com a minha ideia inicial de ter um disco mais clássico, mais orgânico.
Antes de sair o disco, saíram alguns singles, nomeadamente “Consequências da Idade” e “Rotinas”, que davam a sensação de o disco estar a ir por um caminho mais Por Este Rio Acima, Fausto, algures por aí, mas afinal não. Qual é que foi o ponto de partida para este álbum? Porque o anterior era mais expansivo, este é mais reflexivo.
É giro falares no Fausto porque o Por Este Rio Acima foi o disco que eu mais ouvi no ano passado. De facto eu pensei nisso que estás a dizer, e falei sobre isso até com o Luís [Nunes, Benjamim, fundador da editora Discos Submarinos], do facto de possivelmente estar a enganar as pessoas porque o disco não é bem aquilo, e a escolha de um single é sempre uma coisa perigosa, porque no fundo ou escolhes uma música que se calhar pode representar o disco – que é um disco mais calmo, não é tão expansivo como a “Rotinas” ou a “Consequências da Idade” – mas na verdade o Luís dizia-me: «pá, mas isso é o que os músicos fazem desde sempre, escolhem as músicas mais orelhudas e depois vais ouvir o disco e não tem nada a ver com aquilo, muitas vezes». Portanto, acabei por escolher esses dois singles para mostrar, na verdade, que voltei a existir.
Sim, depois do primeiro álbum a solo estiveste um pouco recatado.
Eu desapareci, fiz o meu primeiro disco e depois desapareci completamente, fui-me um bocado abaixo. E o disco também é um bocado o reflexo disso, não sei se é bem desapontamento, mas… eu passei um bocado mal depois do primeiro disco, estive meio depressivo – não uma depressão clínica, mas não querer voltar a compor, não fazer nada durante muito tempo. De 2016 a 2020 eu não compus nada. Apesar de ter os [You Can’t Win] Charlie Brown, o Âmbar é o primeiro disco em que eu não fiz nenhuma base de música, porque não conseguia compor. Falei com eles, «desculpem mas eu nesta fase da minha vida não vos consigo ajudar em ter uma base estrutural, consigo ajudar nos arranjos da música e naquilo que está feito», depois trabalhávamos em equipa, mas este foi o primeiro em que eu não tive nenhuma base musical, porque não conseguia mesmo compor. E depois em 2020 comprei uma guitarra (com 6 cordas, nunca tinha composto com 6 cordas), fui pai, houve a pandemia, e decidi experimentar a guitarra. Então saíram as primeiras três músicas e aí começou a história do disco. Pensei muito sobre ele e queria aprender ao máximo com tudo aquilo que sinto que errei no primeiro disco e que me levou àquela depressão, tentei lutar um bocado contra tudo o que correu mal e corrigir esses erros. E o resultado do disco é isso, uma tentativa de melhorar, de emendar aquilo que fiz de mal.
Mas então tiveste uma depressão musical, criativa.
Sim, não foi depressão clínica, foi ligada à parte musical. E como a parte musical nunca foi um trabalho a tempo inteiro eu consegui dizer «vou esquecer isto, não vou fazer mais músicas até achar que faz sentido», e foi o que eu fiz, larguei a música. Larguei a parte criativa da música, mais ou menos – nos Charlie Brown ajudei na parte criativa mas nunca com uma base estrutural, porque habitualmente cada um faz uma base e depois trabalhamos em conjunto, neste caso eu não fiz nenhuma base. Mas depois, em 2020, voltei a tentar pegar numa guitarra e compor.
Em Março de 2020 foste pai pela segunda vez e pouco depois o país fechou em pandemia. Esse contexto afectou a tua criatividade?
Afecta sempre, nem que seja para teres um novo mote, muito pessoal, que podes depois transmitir de alguma maneira. Por isso é que tivemos tantos projectos a aparecer durante a pandemia, muita gente aproveitou para produzir (o Pedro Branco fez para aí 3 discos durante a pandemia). Mas sim, todos os momentos que nós vivemos, a paternidade e não só, dão sempre alguma faísca para poder escrever sobre isso.
E quiseste transpor para as músicas a tua experiência, mesmo que poeticamente disfarçada…
… às vezes. A primeira música do disco chama-se “Segunda” por causa da minha segunda filha. A segunda música chama-se “Débora” que é a minha mulher, portanto o disco é mesmo muito pessoal… noutras está tudo mais disfarçado, estas são as mais óbvias, mas tudo são experiências daquilo que eu estava a viver na altura, ou que amigos meus estavam a viver. Foi outra coisa que eu queria para o disco e queria fazer diferente do outro, queria que as letras me dissessem mesmo qualquer coisa, que não sejam muito objectivas mas que também não sejam muito vagas, que sejam pessoais o suficiente para mim mas que as pessoas também se possam identificar com elas.
E como é que foi compor canções, tendo duas filhas pequenas em casa? Ficou mais difícil gerir o tempo para ser criativo?
No meu caso, as primeiras três músicas que compus (“Geração Sossegada”, “Débora” e “Sei Que É Tarde”), foram feitas em 2020. E como estava num ambiente calmo (fui com a minha mulher e filhas para uma casa de família, a Casa da Vigia), não havia muito para fazer, dava tempo para fazer tudo, dava para pegar na guitarra e gravar uma ideia, depois ia fazer outra coisa e mais tarde voltava, o tempo parecia que era elástico, não havia mais nada para fazer, a não ser tratar das filhas ou ver televisão, portanto aproveitei para ser produtivo. Nas restantes, fui-me embora, a Débora ficou em Lisboa com as minhas duas filhas e eu bazei durante uns dias para compor o resto do disco, portanto tive muita sorte neste aspecto. Tirei uma semana de férias e fui para essa casa, em que compus uma música de dois em dois dias. Não era um objectivo mas foi o que aconteceu, em dois dias fechava uma música, letra e guitarra. Houve duas músicas que foram feitas num só dia, são aquelas que te saem e tu não sabes como é que aquilo apareceu, mas é bom. Mas foi isso, acordava, tomava o pequeno-almoço, pegava na guitarra logo de manhã, tentava inspirar-me, depois ao fim do dia ia correr ou fazer outra coisa qualquer, mas a partir das 18h já não fazia mais nada. Foi isto durante uma semana e é perfeito, é incrível, adorava poder fazer isto sempre. Mas eu disse à minha mulher: «obrigado por ficares com elas, eu vou uma semana mas não sei se vou conseguir fazer alguma coisa, portanto não sei se não vai ser em vão, ficas aqui com este trabalho todo e eu vou fazer trabalho criativo, pode não sair nada», estava com medo que não saísse mesmo nada. Mas como funcionou, valeu a pena.
Queria saber sobre o título do disco, Vigia, já disseste que é o nome da casa onde foi composto o disco. Mas antes de saber isso eu indagava, se vigia seria um sítio ou um estado.
É os dois, eu gostei do nome precisamente por isso, por haver essa dualidade e não ser uma palavra estanque. Não é preciso que as pessoas saibam que aquilo foi feito na casa da Vigia, se souberem é uma curiosidade, a Vigia tem mais a ver com a mensagem do disco inteiro, que por acaso foi feito na casa da Vigia. O puzzle acabou por se juntar todo e fazer sentido por si só, não foi preciso pensar muito. E quando as coisas se encaixam tão bem, não faz sentido fugir delas.