Como se fala de uma coisa que é tão grande que não cabe na prateleira das coisas que são nossas? Algo que atravessa décadas, géneros, gerações, países, culturas. Algo que toca tanta gente, que se reconhece em qualquer lado do mundo. A verdade é que… não faço a mais pequena ideia.
Há muito tempo que penso em falar sobre o primeiro álbum dos Joy Divison, Unknown Pleasures. Ouvia-o, entusiasmava-me, mas depois era confrontado com essa sensação de impotência, de pequenez, perante algo que é tão maior que o habitual. É quase como tentar fazer uma crítica à Bíblia. Rapidamente, a ideia passava…
Acredito também que a música não serve só para animar jantares de aniversário nem fazer barulho enquanto estamos no trânsito. Acredito que a música deve ser degustada de cabeça aberta, celebrada com tanto fervor quanto aquele que cuspimos quando vemos tocar as nossas bandas favoritas, os nossos álbuns prediletos. Grande parte do universo que a música é prende-se naquilo que se fala sobre ela: as discussões acesas entre aqueles que preferem Nick Cave e os que gostam mais de Echo & the Bunnymen, ou as conversas sobre quem é melhor: os Led Zeppellin ou os Pink Floyd. Isso também é música. O que pensamos, o que sentimos e a partilha dessas opiniões com outras pessoas a quem ela diz tanto quanto a nós. Por isso tudo, e para celebrar os 35 anos do lançamento do disco, decidi arriscar. Mais que dizer bem ou dizer mal deste ou daquele ponto, esta análise será uma homenagem descritiva de um dos álbuns mais marcantes da história da música, uma tentativa de perceber melhor o tamanho da sua influência e como ela foi alcançada. Sem peneiras e escrevendo como um assumido grande admirador da banda inglesa, vamos descobrir o que se esconde por entre as linhas aguçadas, os montes e vales que transportaram este trabalho para as t-shirts, malas, cadernos, canecas, bibelots e chupetas deste mundo.
Vasculhando por entre a secção dos usados na nossa loja de discos favorita, vamos folheando disco atrás de disco. Passamos por Buzzcocks, Sex Pistols, Iggy Pop, até que paramos. Dentro de uma sleeve transparente, já baça pelo pó, vemos um quadrado grande, preto, com uma cordilheira estilizada a enfeitar o seu centro. Um conjunto de riscos sobrepostos, empilhados, formam um retângulo vertical que imediatamente chama à atenção de qualquer um. As linhas, que a meio saltitam, fazendo um desfile de picos e depressões, prendem-nos – não há como negar, especialmente quando nada mais se vê na capa deste álbum que agora temos na mão. Isso, a capa: comecemos por ela.
Hobbies: todos temos um qualquer. Seja construir comboios em miniatura como o Neil Young, colecionar selos como o Ronnie Wood ou colecionar canecas como o Grandmaster Flash, a verdade é que tal como nós, meros mortais, os supermúsicos desta vida também têm o seu passatempo favorito. Os Joy Division gostam de astronomia. Quer dizer, não se sabe ao certo, mas a icónica capa de Unknown Pleasures denuncia qualquer coisa.
Este conjunto de linhas são, na realidade, ondas de radio captadas algures no início da década de 70 que representam um fenómeno astrológico conhecido como pulsar – em termos mais relaxados, uma estrela morta (irónico, não?) Reza a lenda que a banda contactou Peter Saville, um designer que já havia feito vários posters para o clube noturno Factory e que viria a fazer grafismos não só para os JD mas também para os New Order, Roxy Music e Pulp, com uma cópia do Cambridge Encyclopedia of Astronomy, livro onde aparecia o gráfico. Saville adotou a sugestão, deu-lhe um toque (inverteu as cores que, no seu formato original, eram preto sobre branco e passaram a ser o inverso) e estava feito. Não queria mais nada, só o gráfico. No verso, nada de lista de músicas, só o nome da banda e do álbum e umas outras referências à Factory Records. A sleeve interior é branca e de um lado tem uma imagem quase mística de uma mão a sair de uma porta, trabalho de Ralph Gibson, famoso fotógrafo norte-americano. E foi assim que o mito ganhou cara. Uma parte dele, pelo menos. A outra parte viria pela mão de Martin Hannett.
As demos originais do Unknown Pleasures já haviam sido gravadas há algum tempo, ainda a banda se encontrava ligada à editora discográfica RCA Records (viriam a abandonar a label no final de 1978), quando Rob Gretton, promotor e manager, passou a orientar os caminhos dos Joy Division. Gretton ouviu as master tapes e não ficou impressionado. Aquele que seria o grande salto para a jovem banda de Manchester soava desajustada àquilo que o grupo era e podia ser, e a qualidade de produção roçava o amadorismo. Em pouco tempo, Tony Wilson (fundador da Factory) e a própria banda chegaram à mesma conclusão que Gretton e o fator que iria desbloquear a situação pareceu óbvio a todos: Hannett. Fazendo parte da prata da casa Factory (tinha sido um dos seus membros fundadores), Hannett tinha alguma experiência na captação de sons e na sua utilização como elementos musicais, e isso fez-se notar em muito pouco tempo. Usando samples de coisas tão rocambolescas como o som de um autoclismo da cave dos estúdios, alguém a comer batatas fritas, o som do elevador dos Strawberry Studios ou até mesmo tiros da pistola Walter de Stephen Morris, Hannett foi o responsável pela criação da sonoridade dos JD que hoje reconhecemos. Como em tudo, o consenso não foi transversal aos membros da banda: a nova sonoridade, mais soturna, menos agressiva em comparação com os tempos de Warsaw, foi difícil de engolir para Hook, por exemplo, que afirmava sentir-se desiludido com a nova textura sonora: «Não conseguia esconder a minha desilusão… Soávamos como os Pink Floyd.» Summer, Morris e Ian estavam bastante contentes com o resultado final. Summer dizia que Hannett tinha dado nova vida à sua música, tinha completado os espaços e branco que ela trazia consigo, e Morris achou brilhante a dualidade que se acentuava entre aquilo que era ver o álbum tocado ao vivo – mais forte, agressivo – e ouvir em casa.
«Tum tum ta ta tum tum ta / tum tum ta ta tum tum ta» e entra o baixo, pesado, mas simples. Dá lugar à guitarra que em pouco tempo traz o Ian. Começa a tocar «Disorder», a primeira música do álbum. Cheia de energia condensada, apertada dentro de um invólucro pouco flexível, dá-nos uma ideia daquilo que era a melancolia estoica de grande parte do estilo JD. Uma revolta muito grande, mas pouco expressa, pouco explosiva, mais contida, sempre envolta num minimalismo sonoro fora do vulgar; basta vermos a bateria ou no baixo, que raramente são muito floreados. A guitarra será, talvez, o elemento instrumental que mais alterações vai tendo a par dos samples que forram o ambiente. Tudo parece ser feito para deixar a voz falar. «Day of The Lords» segue-se e a mesma nuvem cinzenta mantém-se sobre nós. A guitarra fica mais agressiva, raivosa, e Curtis fica menos contido, mais visceral («I’ve seen the nights, filled with bloodsport and pain / And the bodies obtained, the bodies obtained»). Temos uma das faixas mais pesada do álbum. Com «Candidate» voltamos a ter um pouco mais de contenção. Toda a música soa a algo morno, sem grande movimento nem genica. Somos quase embalados, para a frente e para trás, mas nunca se sente sol, luz ou qualquer outra coisa minimamente alegre. Até agora, apenas sentimos a parte mais escura da sonoridade dos JD; se «New Dawn Fades» (solo de guitarra imperial: sem grande aparato transporta uma sensação de resiliência, de força) fosse a faixa que se seguisse, poderíamos dizer tranquilamente que estavam todas juntas, logo no início, as músicas mais soturnas do álbum. Mas não: antes de «New Dawn Fades», ainda falta «Insight». Ian Curtis já soa distante sem fazer por isso, mas nesta música Hannett quis ir mais além: toda a voz é gravada através de uma linha telefónica. Apesar do teor profundamente depressivo da letra («Guess your dreams always end / They don’t rise up, just descend»), instrumentalmente sentimos pela primeira vez um bocadinho alegria, a melodia sorri um pouco mais. Esta esquizofrenia musical entre letra e melodia também será um fator que ficará para sempre colado à banda.

Surge o primeiro megaêxito: «She’s Lost Control». Este hino à indecifrável mente feminina é, de certeza, a banda sonora oficial de milhares de raparigas de coração partido ou desespero profundo. Conta-nos o filme biográfico dos JD, Control, que esta canção surge de uma experiência que Ian teve quando trabalhava num centro de emprego. Corinne Lewis, uma jovem epilética, aparece certo dia na sua secretária procurando trabalho e, a meio da conversa, irrompe num violento ataque de epilepsia. Mais tarde, sabendo que a jovem falecera durante um ataque grand male (tipo mais violento de ataque epilético), Ian, cuja compaixão e solidariedade foram sempre bastante reconhecidas ao ponto até de causar frequentes crises de ciúmes a Deborah Curtis, decide homenageá-la. Assim nasce a música e toda a sua ambiência pesada, quase psicótica, onde o sample de uma lata de ar comprimido a vazar e uma percussão hipnótica em tudo contribuem para a espiral sonora que é este bom naco de música boa. Temos «Shadowplay», agora, a minha música favorita do álbum. Bem ao estilo pujante, quase epopeico, de outras músicas deles como «Transmission», por exemplo, chega de mansinho com o baixo clássico e o não menos clássico tilintar dos pratos da bateria. Vem a voz e depois um dos riffs mais memoráveis da banda – tudo fica mais calado e ela entra com força, impetuosa e sem pedir licença. Somos reis do mundo durante estes três minutos e 54 segundos e não há versão manhosa dos Killers que estrague isso. «Wilderness» segue-se e pica o ponto, é a que menos me fala de todas as outras que compõe o álbum. De louvar porém o baixo requintado que tira o pio ao resto da composição. Com «Interzone» temos o primeiro cheiro a mosh mais intenso. Em alta velocidade, a guitarra vai seguindo a fugir de qualquer coisa como se ilustrasse uma perseguição de carros. Música para ouvir com o pessoal amigo fazendo tudo menos coisa boa. Chegamos ao fim com «I Remember Nothing» e toda a sua negrura pesada. Uma faixa que consolida quase uma carreira inteira, em termos de sonoridade. As cordas ficam molengonas e arrastam-se, pesarosas. Como alguém preso numa sala de espelhos, chega-nos voz por todo o lado, sempre a cantar a solidão, a diferença, o vazio. E assim se passam 40 minutos de história pelos meus ouvidos. 40 minutos que congelaram sob a forma de um estilo singular, uma profundidade fora do comum para o género. 40 minutos que todos os que gostam de música reconhecem como um dos seus grandes marcos… mas nem sempre foi assim.
A 15 de junho de 1979, 10 000 unidades do disco foram lançadas pela primeira vez um pouco por toda a Inglaterra. Apesar do relativo sucesso que o EP Ideal for Living tinha recebido, a verdade é que as vendas foram alarmantes: pouco ou quase nada se tinha vendido, e Alan Erasmus, outro dos fundadores e gerentes da Factory teve em sua casa guardados centenas de álbuns que ficaram por vender, álbuns esses que desapareceram em poucas semanas após o lançamento do single «Transmission». Foi a partir dai que o álbum ganhou maior importância, esgotando a primeira leva de pressings e, inclusive, uma segunda. De destacar a tour que fizeram a acompanhar os Buzzcocks, fator importante que ajudou a fazer descolar a banda. Não há uma história muito alegre para contar sobre a presença do disco no UK Albums Chart, apesar da sua histórica prestação na vertente Indie do mesmo top. O lançamento de Unknown Pleasures coincidiu com a primeira edição de janeiro do UK Indie Chart, e nada melhor do que o estrear com um valoroso segundo lugar. Depois da morte de Curtis e do lançamento de Closer, foi apresentada uma reedição do trabalho que viria a explodir nos tops ingleses, mantendo-se neles presente durante 136 semanas consecutivas.
Podia ficar por aqui mais umas horas, falar dos vários prémios que o álbum ganhou, as múltiplas distinções, as quase infinitas referências um pouco por tudo o que seja cultura (musical e não só) do século XX e XXI. Podia filosofar sobre o que quererá dizer aquele verso, as notas daquela melodia, podia muita coisa. Podemos sempre. Neste caso podemos mais ainda: seja pelo destino escolhido por Ian Curtis, seja pela aura misteriosa e poderosamente cativante da música dos Joy Division ou talvez pela imagética noturna e pesada que os caracterizou, a verdade é que é muito difícil fugir ao magnetismo, não só da banda como também deste disco que aqui tentei dissecar. Todos nós já tivemos, havemos de ter ou, como eu, estamos a ter uma fase em que é difícil desprender de tudo isto, onde queremos conhecer mais, ouvir mais. Como disse, eu estou aí agora. Se o leitor ainda não tiver passado por esta fase obsessiva, ou se já passou e quer reencontrá-la, espero que este texto contribua. Disse no início que a música é também aquilo que falamos sobre ela: pois mantenho o que disse e acrescento que a música é também o poder da reinvenção e reincarnação. Conseguirmos pegar num disco de há 35 anos e ouvi-lo sem pudor, imitar os que o cantam e tocam, homenagear os fatores que o constroem: isso para mim é música também. Muito, muito boa música.