É repudiar toda a carreira de um homem se lhe dissermos que o seu último disco excelente, ou, pronto, mais meiguinho, consistentemente genial de uma ponta à outra, data de 1984? Não. Mas, para ninguém me apedrejar, tenho que virar-me agora para os mais devotos. Sigam-me.
Tu.
Sim, tu que estás aí, a afagar desconcertantemente a caixa Ties That Bind: The River Collection. Estou a falar contigo.
Ouve uma coisa. Ambos somos fãs do Boss. Ambos sabemos que do Born To Run até ao USA, tudo cuspido e riffado pela boca do homem é imortal. Mas ambos sabemos que a partir daí, já não bateu com a mesma força.
Diz-me lá que não.
Tenta lá falar-me dos outros álbuns acústicos dele para além do Nebraska. Convence-me de que o The Ghost of Tom Joad é igualmente genial e que o Devils & Dust não te faz adormecer (ou rir), sem sentires por um segundo ou dois de que estás, na verdade, a esforçar-te mais para convencer-te a ti próprio.
Tenta argumentar a favor do Tunnel Of Love, do Magic, do Working On A Dream, do Wrecking Ball. Diz-me que são pontos altos na carreira do homem. Mas desafio-te a ouvires logo de seguida Darkness On The Edge Of Town e não chorares um bocado por dentro.
Não obstante, tanto eu como tu sabemos que existem jóias, pérolas, diamantes tão intemporais como qualquer um dos êxitos do rato de New Jersey escondidos no meio destes álbuns com poucas ideias exageradamente prolongadas, mal produzidos, desinspiradamente grandiloquentes e retrogradamente revivalistas. Poderia redigir um parágrafo gigantesco só com títulos de músicas dessa estirpe para o provar. Mas não o vou fazer, porque vou falar-te da excepção à regra. Porque o que disse nas primeiras linhas deste texto não é completamente factual, a não ser que falemos estritamente de excelentes álbuns de originais. Realmente, o último disco magistral de Springsteen data de 2005 e não contem uma única composição sua. Falo de We Shall Overcome: The Seeger Sessions.
Num projecto ambicioso, Bruce abandonou a sua E Street Band, reuniu um conjunto de músicos da sua terra natal e de Nova Iorque com os quais nunca tinha tocado uma nota em conjunto na sua vida, baptizou-os de The Sessions Band, enfiou-se com esta recém-formada pandilha na sala de estar da sua quinta (os metais ficaram no hall) e decidiu atirar-se a uma mão cheia de canções profundamente enraizadas no cancioneiro americano, popularizadas pelo lendário trovador Pete Seeger. Talvez revitalizado pelo desregrado tom blue collar destas composições, Bruce soa mais urgente e enérgico do que soou em décadas. E entende-se porquê.
Bruce descreve, nas notas do álbum, esta música como “street corner music, parlor music, tavern music, wilderness music, circus music, church music, gutter music”. A descrição é apta: gravado em três sessões de um dia, sem ensaios prévios, o álbum emana uma energia descontrolada, festiva, mas igualmente comunal e convidativa – tanto corneta de circo como coro de igreja. Uma gloriosa algazarra completamente acústica, sem uma nota electrificada ou amplificada, Seeger Sessions intumesce-se a cada segundo que passa, comandado por um Bruce folião que grita o nome dos músicos para darem a sua entrada nas cantigas.
A sinergia e capacidade de criar belíssimos sentimentos e atmosferas dos músicos é um verdadeiro tesouro, fazendo deste o álbum de Springsteen que, não obstante podendo ser experienciado e dançado ao de leve sem grande atenção, é aquele que mais valor e detalhe tem ao ser revisitado. Evite-se o pecado de confinar este disco a auriculares, a expansão destes trabalhos exige a grandeza de colunas e de uma boa dose de volume.
Prolongar-me-ia eternamente na tentativa de descrever o brilhantismo deste trabalho. A verdade é que, na total atitude descomprometida com que se atiraram de cabeça a este projecto, a cabeça ouvinte ainda projecta comprometer-se a perceber como soa isto tudo tão incrivelmente rico. Como o murmúrio do entardecer de “We Shall Overcome” se apodera, se tal existir, da ligação musical entre ouvido e batimento cardíaco. Como “O Mary Don’t You Weep” é ensinamento de monumental teatralidade através da transmissão de nada mais do que sentimento puro e desmascarado. Como “Jesse James” ou “Froggie Went A Courtin’” me farão abanar mais as ancas do que qualquer groove electrónico, funk ou rock. Como violinos dão tão fluidamente a passagem ou se mesclam tão naturalmente com sopros, banjos, pianos, guitarras, criando novos instrumentos no processo, tal o sentimento de pertença e de união.
É que isto é mesmo muito bom. Até dá vontade de dizer asneiras.
Não é de génio, é de músico. Obra-prima.