A Árvore Kriminal, de 2011, tinha deixado o aviso: havia uma voz diferente, única até, no panorama do hip-hop português.
Quatro anos depois, a voz regressa e, ao terceiro disco, traz-nos um documento essencial para o Portugal de 2015. Híbrido é isso, tudo isso, e muito mais.
Esta é a terceira edição de Allen Halloween, de seu verdadeiro nome Allen Pires Sanhá, a voz do subúrbio, a voz do gueto, a voz de um dos países que fazem este país. Halloween fala-nos de tudo isso, de racismo, de vida criminal, da busca da redenção, da falta de oportunidades, da desigualdade, da luta diária, da loucura que a pobreza traz. O que ele traz de novo face ao panorama hip-hop nacional é que o faz com a voz mais idiossincrática da sua geração. Ninguém rima como ele, ninguém entrega as palavras desta forma, arrastada e aparentemente alcoolizada, com uma autoridade maior que os seus 36 anos.
Os beats são lentos e eficazes, emprestando aos temas a melancolia e a desesperança quando a mensagem tal pede. O som, aliás, é simples, a produção parece por vezes caseira e caótica, dando-lhe uma ingenuidade que só reforça mais a honestidade do que Halloween nos diz. E o que interessa é isso, o que ele diz.
Vive na contradição entre o mundo de crime que o rodeia e do qual faz parte e a busca da redenção, que encontrou na Bíblia e em Jesus Cristo. É aqui que a habitual bazófia bad boy do hip-hop conhece uma face única, de alguém que faz o que tem de fazer para sobreviver, sabendo que o tempo, a lei, a vida, o apanhará mais tarde ou mais cedo. É um evangelismo das ruas, do gueto, da vida real, com a procura de um amparo face à loucura que rodeia o homem moderno no Portugal de 2015, que acaba de reeleger a coligação que mais fez a vida negra aos pobres e desamparados. Aqui não há santos e pecadores, há de tudo, muitas vezes misturado.
Há momentos para tudo, neste disco riquíssimo e que cresce a cada audição. Há relatos da vida de crime e dos putos que querem ser bandidos para provar alguma coisa; há alegorias bíblicas; há toxicodependência; há o mundo do bullying no excessivo “Mr. Bullying”; há violência policial em “Bairro Black”, com o mentor General D; há comédia, também, nas rimas certeiras e algumas delas hilariantes; há português misturado com o inglês dos gangsters de rua, há crioulo que é também língua de Portugal; há um mundo, que é o nosso, mesmo que não o vejamos, mesmo que não o queiramos ver.
Há Allen Halloween, que tudo disto fala como um Matusalém confundido com o que se passa à nossa volta.
Um disco que, tal como o anterior, marca um artista como a voz mais peculiar da sua geração, que pede para ser escutada. Não ouvimos aqui hip-hop a soar a Nova Iorque, conversas de carros rápidos e mulheres pagas. Ouvimos o que nos é próximo, mesmo que esteja à distância de poucos quilómetros, num bairro onde nunca entraríamos.
Uma honestidade desarmante, um talento surpreendente, um caminho que se faz à parte de tudo o resto. Que sejamos capazes de o ouvir.
